Boal transforma ópera de Verdi

A Traviata é, na verdade, o aprimoramento de um gênero criado por Boal, a sambópera. As melodias originais de Verdi são cantadas em ritmos brasileiros

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

O pai pede para a filha abandonar seu apaixonado e se casar com outro homem, rico e de boa família. Em cena, os diálogos tratam desse assunto, mas a representação dos atores é outra: durante a conversa, a moça surge presa a uma cruz. "Ao impor sua vontade, o pai está metaforicamente crucificando a filha e seu amor", explica Augusto Boal, diretor que incluiu a cena em A Traviata, reinterpretação da ópera de Verdi, que estréia nesta quinta-feira, no Teatro Gláucio Gill, no Rio. "Meu compromisso estético como encenador é com o real e não com o realismo, o que faz com que, muitas vezes, o que se vê no palco seja o contrário daquilo que se ouve." A Traviata é, na verdade, o aprimoramento de um gênero criado por Boal, a sambópera, cujo primeiro exemplar foi Carmen, encenada em 1999. Trata-se de uma forma de adaptação que promove mudanças sutis na melodia, harmonia e ritmo da partitura original. Assim, na cirurgia musical promovida por Boal e seus colaboradores (com o poeta Celso Branco e o diretor musical Jayme Vignoli à frente), a melodia foi mantida como no original de Verdi, apenas transposta para regiões mais graves. Também a harmonia não sofreu alterações, só é executada por instrumentos diferentes dos originais, como cuíca, agogô, berimbau. "Assim, as árias se transformaram em sambas, frevos, maxixes, valsas, bumba-meu-boi e até em tango", comenta Vignoli. Já os ritmos foram adaptados para aqueles mais comuns aos ouvidos brasileiros, um som, segundo Boal, mais próximo das nossas memórias que nossos corpos reproduzem. O trabalho não foi tão tortuoso. "Verdi era brasileiro e não sabia", brinca o encenador, ao constatar inúmeras semelhanças na partitura do italiano com a tradição musical nacional. "Nosso maior desafio foi acentuar as estruturas mais brasileiras." Encenação - Outro detalhe importante na transcrição foi uma modificação na forma de encenação dos atores. Como na ópera tradicional, os cantores tendem a interpretar a música e não os papéis dramáticos, Boal não deixou, na sambópera, que a relação entre os personagens ficasse em segundo plano em relação às canções. A decisão tornou-se ainda mais importante quando ele decidiu que a encenação não corresponderia necessariamente ao que está sendo dito no palco. O diretor decidiu então construir uma combinação de estilos, misturando o operístico com o realismo e o expressionismo. Entrelinhas - Uma certa contradição é um dos principais elementos da montagem. Assim, já no final, quando Violeta, a heroína, está à beira da morte, os personagens que a cercam declamam sua esperança no pronto restabelecimento, mas, ao mesmo tempo, a colocam dentro de um caixão. As entrelinhas aparecem e são escancaradas em toda a encenação, já a partir da primeira cena, quando a sala da casa de Violeta é apresentada como um bordel de luxo - surgem diversas mulheres, que começam a dançar com bonecos manequins, revelando seus desejos. A Traviata conta a história de Violeta Valéry (interpretada por Ana Baird), cortesã parisiense que encontra, em uma festa, o jovem Alfredo Germont (Raul Serrador), que se declara apaixonado. Já condenada pela tuberculose, ela afirma que não pode amar, mas não resiste à paixão pelo jovem e acaba fugindo com ele para o campo. O pai de Alfredo, o velho Germont (Celso Branco), vestido como um coronel nordestino, pede para Violeta abandonar o filho, em respeito à honra da família. Ela concorda com a renúncia e volta a Paris, onde é humilhada por Alfredo. Antes de morrer, Violeta recebe o velho Germont, que louva seu sacrifício. "O espetáculo é cheio de imagens, além de ser multicultural", comenta Boal, criador do Teatro do Oprimido e que utilizou a experiência acumulada nas diversas viagens que realizou (algumas obrigadas, pois foi banido pelo regime militar). "Não misturei simplesmente uma série de formas de atuar, mas resgatei o essencial do comportamento humano", afirma. "A Traviata não é um espetáculo antropofágico, mas metafórico."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.