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Bizarrias na família

Não é toda família que tem uma dona Sílvia, uma Eufrásia e uma prima barbada

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Nunca se sabe o que vai cair quando se dá uma boa chacoalhada na árvore genealógica, seja ela imponente baobá ou modesto assa-peixe. Você espera uma safra de barões assinalados e vê pingar algum marquês de rabicó - ou, muito raramente, o contrário.  De minha parte, nunca empenhei expectativas nobiliárquicas nesse chacoalhar. Limito-me a supor que em meu hipotético brasão familiar haja um cifrão provido de asas, a indicar que aqui não ficou resquício de fortuna, se é que um dia houve alguma. Talvez por isso mesmo, com uma dose de resignação, sempre estive mais interessado em conhecer o que haja de menos convencional na galeria de meus antepassados e colaterais. Gente fora dos padrões costuma ser mais interessante. Ou gente comum com histórias bizarras, como certa dona Carola, que século e meio atrás passou desta para melhor por causa de um bicho-do-pé. 

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Minhas sacudidelas genealógicas jamais me decepcionaram. Boas surpresas se empoleiram nos ramos da árvore familiar. Andei escrevendo, por exemplo, sobre o bisavô Francisco, que, prefeito do Rio nos começos da República, se notabilizou por proibir o jogo do bicho, então restrito ao antigo Jardim Zoológico carioca, em Vila Isabel. A gente sabe no que deu: reprimida lá dentro, a jogatina simplesmente cruzou o portão e se disseminou pela cidade, pelo Estado, pelo Brasil inteiro. 

Falei também, e até com insistência, na Maria Francisca das Chagas Werneck, que viveu no século 19 e entre nós ficou conhecida como “a prima barbada do Maçambará”. Sim, a moça tinha barba. Não me refiro a mero buço, encontrável desde sempre no rosto de tantas senhoras das melhores famílias, nem de alentada penugem. Nada disso. Tratava-se de uma frondosa, inequívoca, assumida, estupefaciente barba-colar, dessas que vão de uma orelha à outra e que, por isso, ficaram conhecidas como “passa-piolho”, pois permitiriam que o citado inseto anopluro da família dos pediculídeos transitasse, via queixo, de um lado a outro da cachola. Um dia compareceu na fazenda um pintor - integrante, há quem diga, da famosa Missão Francesa - para retratar a família. A Maria Francisca pediu um tempo, mas não para passar a navalha; ao contrário, fazia questão de exibir seu adorno piloso, mas só quando estivesse no ponto. Assim foi feito. 

Já pensou? Além de bordar e se abanar com leques, como as senhoras e senhoritas de antanho, minha prima, cuja feminilidade nem por isso era posta em dúvida, cofiava a barba, como se marmanjo fosse. Se você acha que estou inventando, saiba que tenho condições de exibir uma reprodução, em cores, do retrato a óleo da prima barbada do Maçambará. Está num livro saboroso, No Tempo dos Barões, de Maria Werneck de Castro, parenta minha que, diferentemente da Francisca, não tinha no rosto um fio a mais do que convém a uma criatura do sexo feminino. *  Menos bizarra, mas não destituída de interesse, e bem mais próxima de mim, era a tia-avó Sílvia, que conheci velhinha mas ainda esperta. Solteirona, viveu em Petrópolis, mas sempre com um pé na estrada, até bem perto de o pôr na cova. No seu caso, acho eu, a fé religiosa era apenas pretexto para peregrinações. Um dos sobrinhos, irreverente, contava que em visita à Terra Santa a nossa tia torrou dólares na compra de uma ferradura que teria calçado o burrinho em cujo lombo Jesus Cristo fez sua triunfal entrada em Jerusalém no Domingo de Ramos. Não estava nem aí para o dinheiro. Tinha um monte de ações do Banco do Brasil, herdadas do pai (aquele que acabou com o jogo do bicho), e poderia tê-las multiplicado várias vezes, sem meter a mão nas algibeiras, sob a forma de “filhotes”, num desses momentos em que a bolsa de valores dá uma empinada. A sobrinhada de olho gordo foi bater à sua porta, suplicando-lhe que, por eles, exercesse seu direito de acionista, mas a tia Sílvia cortou: queria lá saber de chateação? 

A certa altura, encantou-se por Ouro Preto, onde passava temporadas. Em seu sobe e desce nas ladeiras da antiga Vila Rica, causou espécie entre os nativos. Não chegou a suplantar em bizarria a folclórica Dona Olímpia, cuja vestimenta consistia numa criativa colagem de coisas apanhadas no lixo - mas não esteve longe disso. Aonde fosse, sob sol ou chuva, a tia Sílvia, com seu vestidão preto e sua boina, carregava uma sombrinha francesa em cuja ponta atou uma tesourinha, acionável por meio de um barbante. A estrovenga lhe permitia colher flores e pequenas frutas na vegetação que se derramava dos quintais sobre as calçadas. 

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Não surpreende que tenha virado tipo popular em Ouro Preto. No carnaval, durante anos, havia sempre algum gaiato fantasiado de “Dona Sílvia”, nunca lhe faltando, é claro, um arremedo da célebre sombrinha.

Admita: não é toda família que tem uma dona Sílvia. * Numa faixa mais próxima da normalidade, digamos assim, ultimamente tenho lido sobre uma parenta a respeito da qual já se escreveu um bocado, inclusive uma biografia romanceada, a Eufrásia Teixeira Leite. É bem possível que você já tenha ouvido falar dessa bela e fascinante mulher, que, feitas as contas, vem a ser minha prima-trisavó - parentesco por demais remoto, no tempo e na árvore, para que eu pudesse ambicionar algum farelo da dinheirama que ela viu multiplicar-se em seus 80 anos de vida. 

Farelo que, aliás, não sobrou nem mesmo para os que lhe eram mais próximos do que este desinteressado primo-trineto. Ao morrer, em 1930, solteira e feliz, a Eufrásia possuía bens no valor de 37 milhões de réis - “numa época”, calculou num artigo o jornalista Marcos Sá Corrêa, “em que um milhão de réis comprava 50 quilos de ouro”. Doou tudo para uma obra pia, ela que jamais o foi. Na origem da bufunfa, os 383,9 mil réis que herdou do pai aos 27 anos - idade com que deixou Vassouras, no interior do Estado do Rio, para se instalar em Paris, onde viveu durante meio século. 

Por mais de uma década, a prima viveu um caso de amor com Joaquim Nabuco, que batalhou sem sucesso para se casar com ela. Nananinana, fincou pé a Eufrásia, nem um pouco disposta a viver à sombra do charmoso e bonitão Nabuco. Escravizar-se a alguém, mesmo em se tratando de um abolicionista? Jamé! 

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