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"Bis" revela a mesmice dos casais

Usando um artifício de repetição, o espetáculo flagra o casamento em sua incomunicabilidade, repetição e vazio. Mas, mesmo admitindo a resignacão, a encenação aponta para a reinvenção do cotidiano

Por Agencia Estado
Atualização:

Era diferente o amor outrora? Talvez não, mas, a julgar pelo testemunho da arte, eram diferentes os motivos e as conseqüências das brigas. Uma disputa entre Agamenon e Citemnestra, ou entre Jasão e Medeia, só terminava com o banho de sangue que, exemplarmente, nos advertia sobre os perigos da desarmonia conjugal. O realismo do mundo moderno diminuiu a escala do conflito e centrou na instituição mais que imperfeita do casamento a motivação do conflito. Mais de 2 mil anos depois, nos palcos contemporâneos, os casais brigam por brigar, impelidos pelo fatalismo psíquico e o único desenlace em perspectiva é permanência do atrito. Bis, texto de Luiz Cabral encenado agora no Teatro do Centro da Terra é uma formulação dramática do desencanto moderno com a eficácia dos atos humanos. O casal em cena não precisa de substantivos ou complementos verbais para expressar o desconforto da convivência porque as circunstâncias não importam. São igualmente obscuras as forças que atraem, repelem e prendem como uma rede, em situação de atrito permanente, os amorosos de hoje em dia. Por essa razão os enunciados da peça se desenvolvem a partir de palavras soltas no ar, cercados de reticência, ressoando como intenções vagas à procura de alguma coisa que as torne transitivas. O ato gratuito, a repetição, o automatismo da fala que não chega se constituir em comunicação e, portanto, não transforma a situação dramática, são temas recorrentes da arte contemporânea e, nesse sentido, índices de um mal-estar que precisa encontrar uma formalização correspondente. Nesse sentido está legitimado (e em boa companhia) o autor desta contenda amorosa. Há, no entanto, uma outra ordem de exigência que ultrapassa o tema. Trata-se da exigência de ordem estética que cobra o mesmo tributo às boas e às más idéias. É preciso que a linguagem de um texto seja provocante, ultrapassando o entendimento, sugerindo uma correspondente instabilidade entre o que se fala e o desejo dos personagens para que nos interessemos uma vez mais por um assunto, mesmo que nos pareça atual e importante diagnosticar o nó das relações afetivas. Neste caso, o molde linear do desenvolvimento das ações, a pobreza sintática e vocabular das frases e a reprodução dos clichês litigiosos se ajustam como uma luva ao conceito de mesmice. Há uma reiteração temática e formal que se estabelece a partir da primeira fala e não há muito mais a esperar ou obter do desenvolvimento do texto. Curiosamente, todas as possibilidades escamoteadas pela linguagem verbal são desenvolvidas no plano visual do espetáculo e por meio da expressão quase coreográfica das interpretações. Sob a direção de Beth Lopes, uma encenadora interessada em criar belas imagens sem dissociá-las do sentido, a evolução corporal das personagens sugere muito mais do que os enunciados verbais do homem e da mulher em cena. Ao mover-se, adquirindo atitudes corporais significativas simbolizando por meio de desenhos os momentos de ruptura e reaproximação, os dois intérpretes sugerem o desgaste físico, o esforço emocional e um resíduo do desejo de entendimento que sustenta por algum tempo os relacionamentos e a convivência. O tônus muscular da movimentação do espetáculo, por si só, é um elemento que contraria a mesmice. Enquanto as falas ecoam sem objetivo, os atores, alternando vigor físico e exaustão, sugerem que há um investimento de urgência vital na tentativa de chegar ao outro. O resultado é um desacordo incômodo entre o texto e o espetáculo. A lassidão, a rotina e a impossibilidade dialógica funcionam como legendas de uma atuação impulsiva, emotiva e repleta de variações criativas das composições corporais, da luz e da cenografia. Mesmo os toques de humor, leves e imaginativos, são construídos pela entonação e pelos gestos e não encontram correspondência no texto. Personagens incapazes de levar adiante uma frase, estancadas pela exaustão emocional e intelectual são perfeitamente competentes para imprimir um sem-número de significados a uma tira de pano manipulada com habilidade e uma dose inesgotável de invenção. Considerando-se que o surpreendente é, à primeira vista, mais atraente do que o conhecido, o desempenho da dupla de intérpretes absorve atenção e relega ao pano de fundo a idéia da repetição e do desgaste. Não são homogêneas as atuações de Clarissa Kiste e Kiko Bertholini. Mais madura, levíssima nos movimentos e com um rosto maleável, quase uma máscara acentuando sentimentos e humor, a atriz é bem mais segura que o seu companheiro de cena. A figura masculina é mais frágil e mais realista e, por essa razão, fica obscurecida pelo desenho mais artificial e elaborado da personagem feminina. Também os intérpretes parecem divididos entre duas propostas divergentes. Há uma seta apontada para a resignação e outra, definida pela direção do espetáculo, recomendando a atividade emocional e a reinvenção do cotidiano. Bis - De Luiz Cabral. Direção Beth Lopes. Duração 50 minutos. Sexta e Sábado, às 21 horas. Domingo, às 20 horas. R$ 20,00. Teatro do Centro da Terra. Rua Piracuama, 19, em São Paulo, tel. (11) 3675-1595. Até domingo.

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