PUBLICIDADE

Biografia de Sartre chega ao Brasil

Por Agencia Estado
Atualização:

O Século de Sartre é um acerto de contas ? no bom sentido do termo. E não sem motivo. Quando os ?novos filósofos? passaram a defender os dissidentes soviéticos, Jean-Paul Sartre, que não tinha papas na língua nem entraves na pena, chamou-os de ?agentes da CIA? infiltrados na intelligentsia francesa. Vinte anos depois da morte de Sartre, justamente um desses novos filósofos, Bernard-Henri Lévy, escreve essa estranha, intrigante e bastante completa biografia intelectual do suposto desafeto. O livro sai agora no Brasil pela Nova Fronteira. Um acerto de contas supõe acordos e desacordos. Lévy é fascinado por Sartre. Lévy não suporta um certo Sartre. Como conciliar o amor com o ódio, se é que se permitem termos emocionais aplicados a uma investigação filosófica tão rigorosa? Simples: Lévy obedece a seus sentimentos e adota a estratégia de trabalhar com dois Sartres distintos. Um deles é avesso a todo e qualquer totalitarismo. Um deles é libertário, ousado, irreverente e no fundo pessimista, o Sartre de A Náusea e O Ser e o Nada. O outro Sartre, o de Crítica da Razão Dialética, flertou com um dos grandes totalitarismos do século, o stalinista, fechou os olhos para o Gulag, elegeu Fidel Castro como ídolo, aceitou Pol Pot. E terminou a vida refém dos maoístas do pasquim La Cause du Peuple que, cego e alquebrado, vendia pelas ruas de Paris. A saída de Lévy é boa. Permite, do seu ponto de vista, contemplar tanto a miséria quanto a grandeza do homem. Evita divisões demasiado esquemáticas porque diz que há relações de continuidade entre o Sartre ?bom? e o ?mau? ? as aspas são dele. E faz de Sartre o representante eminente de um tempo louco. Afinal, o século 20 foi a era dos extremos, na expressão de Eric Hobsbawm, e Sartre talvez tenha sido o homem que melhor expressou esse tempo de desencontros. Numa terminologia de religião afro-brasileira, Sartre seria uma espécie de ?cavalo? do século. Deixou-se atravessar por ele e encarnou suas paixões, sonhos, ilusões e traições. No entanto, como se sabe, Sartre nem sempre se interessou por política, pelos jogos de poder do dia-a-dia, pelo movimento das nações, em suma, pelo real dos homens em conflito com outros homens. Era um intelectual distanciado da ação e como tal é lembrado pelo amigo e adversário de toda a vida, Raymond Aron. Aron, o outro especular de Sartre, suave, conservador, lúcido, discreto. Foram colegas na École Normale Supérieure e passaram décadas discordando em tudo. Até que, já velhos, se reencontraram no mesmo ato em favor dos boat people vietnamitas, reivindicando asilo para os foragidos da guerra junto ao então presidente da república francesa, Valéry Giscard D?Estaing. Auto de Natal ? Há então o Sartre da liberdade individual e o Sartre entregue aos problemas da comunidade. Qual o ponto de passagem de um para outro? Lévy o identifica em um episódio em particular e em uma obra específica. No começo da 2ª. Guerra Mundial, Sartre é detido pelos alemães e enviado para um campo de prisioneiros. No Stalag, quebra seu isolamento e descobre o calor do companheirismo. Lá escreve e encena, com seus companheiros de prisão, um auto de Natal, Bariona, texto esquecido mas muito significativo para a compreensão do ?caso? Sartre. Bariona, que tem como subtítulo Le Jeu de la Douleur et de l?Espoir (O jogo da dor e da esperança), fala do líder de uma comunidade da Judéia sob o jugo romano. É claramente uma alusão ao expansionismo alemão sobre a Europa na virada dos anos 40. Em protesto contra os romanos, Bariona determina que as mulheres de seu povo não mais dêem à luz. Se a dominação romana é inevitável, ela será uma dominação sobre o nada, sobre ninguém. Acontece que a própria mulher de Bariona está grávida. E acontece também que, não longe dali, em Belém, outra criança está nascendo. Dizem que será o Messias, que vem ao mundo destinado à cruz e à fundação de uma nova ordem. Bariona hesita, mas no fim decide usar sua energia, sua própria vida e a vida do seu povo na defesa daquele enviado que acabara de nascer. O texto é nítida homenagem à Resistência. Pode-se perguntar como os alemães deixaram passar, debaixo dos seus narizes, essa mensagem de oposição tão explícita. Podem tê-la achado inofensiva: ?Deixem os prisioneiros se divertir.? Afinal, era apenas o começo da guerra e tudo ainda corria bem para Hitler. De qualquer forma, se Bariona não mudou os rumos da guerra, pelo menos mudou os de Sartre, analisa Lévy. A partir daquela experiência comunitária, nasce outro homem. Segundo testemunhos, o efeito da encenação de Bariona, na desolação de um campo de prisioneiros naquele Natal de 1940, foi espetacular. Os indivíduos passaram a agir como grupo. A esperança voltou e a fé na resistência ao opressor se acendeu. Esse resultado deve ter ensinado a Sartre o valor político de um texto preciso quando escrito no momento adequado. Pois aí estava sua grandeza, e também sua perdição, segundo Bernard-Henri Lévy. O Sartre existencialista não tinha muita fé na humanidade, mas definia o homem como ser condenado à liberdade. Havia desenvolvido, em seu complexo laboratório mental, uma vacina quase perfeita contra a intolerância. Mas o Sartre que sucumbe ao vírus da multidão acredita num mundo melhor. Engaja-se nessa perspectiva e torna-se presa do discurso ideológico de qualquer regime que lhe pareça trabalhar pela emancipação do homem. O desesperançado é livre. O ser luminoso que acredita no futuro é um totalitário em potencial. Não seria a primeira vez nem a última, acredita Lévy, que a sedução pelo totalitarismo nasceria da luz e não das trevas. Impasse ? Esse é ponto mais original do livro. E também o mais problemático. O homem livre esgota-se em seu niilismo. O comprometido corrompe-se por amor aos outros e por amor à causa. Como não ver nesse impasse um convite à inação? À abulia política que, no fim das contas, é o tom dominante do nosso tempo? Lévy não desata esse nó. E, não tenha dúvida, Lévy não fala apenas do homem Sartre. Usa-o para falar do seu tempo: ?Tento dar conta de uma aventura, e de uma decadência, que foram, para além de Sartre, as do século.? Para enfrentar esse impasse, oferece uma solução pífia. Para ele, o último Sartre, senil, segundo Simone de Beauvoir e amigos íntimos, seria justamente aquele que estava próximo de uma solução. Como? Esse Sartre terminal teria travado um diálogo nas sombras com o filósofo Emannuel Levinas. Por intermédio de um amigo comum, Pierre Victor, Levinas teria fornecido a Sartre o ideal do messianismo judeu, uma idéia de comunidade, uma filosofia da história e a possibilidade de uma moral ? instrumentos suficientes para cortar o nó górdio, que era seu e do século. Essa saída representaria ?o começo do fim desses grandes messianismos profanos que ensangüentaram o século 20?. O Sartre convertido, rabinizado pelo contato com Levinas, estaria no umbral de resolver a contradição entre a liberdade individual e o engajamento, depois de se desfazer dos entraves internos à sua filosofia. Não pôde fazê-lo porque morreu logo em seguida. Bem, pode-se dizer que nessa conclusão há um tanto de fantasia e outro tanto de wishfull thinking, como se Lévy tivesse assumido a mais que suspeita decisão de resolver um impasse (e que impasse, o do século dos extremos), trazendo-o para seara própria. Um escorregão, mas que não compromete a beleza desse livro cheio de paixão e perplexidade.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.