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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Bico calado

Manifesto da britânica Mary Beard é aula sobre a supressão da palavra infligida à mulher

Atualização:

Planejara reservar os feriados de Natal e Ano Novo às mulheres. Nada mais justo; elas foram os destaques de 2017. No mundo inteiro. Sobremodo em Hollywood, com todas aquelas denúncias de assédio sexual, bravura afinal premiada com os maiores sucessos de bilheteria da temporada: Os Últimos Jedi, A Bela e a Fera e Mulher Maravilha, três épicos dominados por figuras femininas.  Quando o ano chegava ao fim, outra conquista: a Islândia tornou ilegal a desigualdade salarial entre homens e mulheres. Cumpri o planejado, sem desvio de rota. Comecei relendo trechos do diário de Susan Sontag e depois o quarto volume do diário de Anaïs Nin, do período 1944-1947, quando ela ficou amiga de Gore Vidal, por uns tempos seu companheiro num antigo convento em Antiqua, na Guatemala. Através de suas confidências cheguei à cineasta e teórica de vanguarda Maya Deren (1917-1961) e seus filmes experimentais, quase todos disponíveis no YouTube. Foi Deren quem apresentou Nin a Vidal, ambos presentes no diário e também figurantes no curta Ritual in Transfigured Time, rodado em 1946. No fim do percurso, mergulhei na leitura de um manifesto feminista, Women & Power (Mulheres e Poder), da classicista britânica Mary Beard. Editado pela Liveright, com 128 páginas e entre nós disponível apenas em versão digital (R$ 38,89 na Livraria Cultura, US$ 6.50, no kindle da Amazon), reúne duas conferências feitas por Beard sob os auspícios do Museu Britânico e a London Review of Books, em 2014 e 2017, sobre o silêncio imposto às mulheres desde a Antiguidade. Beard, que segunda-feira completou 63 anos, sabe tudo sobre as civilizações grega e romana, notadamente a romana, tema de vários estudos, ensaios, palestras e programas da TV por ela ancorados na BBC. Dois foram aqui traduzidos recentemente, Pompeia (Record) e o magistral S.P.Q.R. - Uma História da Roma Antiga (Crítica), um dos destaques editoriais do ano passado. Professora em Cambridge e blogueira do Suplemento Literário do Times londrino, Beard polemiza ainda nas redes sociais, onde suas críticas ao machismo patriarcalista e à violência ancestral contra as mulheres já lhe renderam até ameaças de morte por ostrogodos digitais. Ser contra o Brexit, defender os trabalhadores imigrantes e apoiar a ideia de uma figura feminina nas cédulas da libra inglesa não reduziram sua cota de desafetos. A revista The New Yorker apelidou-a de “troll slayer”, a matadora dos ogros das redes sociais, o anjo exterminador dos internautas agressivos - que ela liquida como se tivesse a “força” da princesa Leia embutida em seus argumentos, às vezes sem perder a ternura, como aconteceu com um agressor que acabou lhe pedindo desculpas e convidando-a para um almoço. Mais tarde, o trollador arrependido foi por ela aquinhoado com um emprego no mundo acadêmico. Por que ela não manda todos às favas? “Para não deixar o pátio sob o domínio dos bullies. Nós mulheres passamos a vida inteira aconselhadas a não reagir, a dar as costas. Chega.” Beard é irresistível. Seus ensaios, eruditos na medida certa, fluidos, elegantes, bem-humorados e disponíveis em múltiplas plataformas, lhe asseguraram notoriedade única entre as feministas do Reino Unido. De violência contra a mulher ela também fala de cadeira, pois sofreu abuso sexual de um arquiteto italiano quando viajava de trem pela Itália, 40 anos atrás. Seu manifesto é uma aula sobre a supressão da palavra infligida à mulher desde a aurora grega. E uma reflexão sobre a continuidade dos mecanismos que silenciaram a mulher e mantiveram-na afastada dos centros do poder. Aristóteles desdenhava a voz feminina, para ele, a prova de sua inata perversidade e falta de competência para tarefas que exigem fala possante - daí o monopólio masculino do discurso público. O mais antigo testemunho do cala-boca da literatura ocidental está na Odisseia, de Homero. Na volta de Odisseu (Ulisses) a Ítaca, após a Guerra de Troia, seu jovem filho Telêmaco manda a mãe, Penélope, ficar muda, recolher-se aos seus aposentos e cuidar “dos próprios lavores, roca e tear”, e do controle das criadas, deixando aos homens o domínio exclusivo da palavra e do mando. “Mormente a mim, a quem cumpre assumir o comando da casa”, conclui Telêmaco. Beard só se deu conta do cala-boca depois de muitas leituras da Odisseia. Nascia ali uma tese, enriquecida com exemplos bem mais chocantes, encontrados em outras fontes, como nas Metamorfoses de Ovídio. A mitológica romana Filomena, além de violentada pelo cunhado, teve a língua extirpada para não delatar o agressor; o estupro de Lucrécia marcou um ponto de virada na história de Roma. Filomena vingou-se bordando o nome do cunhado numa tapeçaria; Fúlvia foi à forra do que Cícero fizera a seu marido, Marco Antonio, cravando um agrafe (grampo de cabelo) na língua do poeta e tribuno. Não há só histórias de opressão no livro de Beard, mas também exemplos de resistência e subversão. Medeia, Antígona e Clitemnestra são exaltadas como “mulheres inesquecíveis”, modelos salutares da implantação do caos na mitologia grega e sua posterior destruição. Em suas conexões com o presente, Women & Power destaca e analisa uma agressiva imagem da campanha eleitoral de Donald Trump, com ele fantasiado de Perseu, fazendo com a cabeça de Hillary Clinton o que o semideus grego fez com a da Medusa. Comparação totalmente fake. Se Trump não é Perseu, Hillary muito menos é uma Górgona. Trump pode ser, no máximo, comparado aos bullies que agrediram sexualmente Filomena e Lucrécia, e ao machão Telêmaco, que ordenou à mãe que calasse o bico e se ativesse ao bordado. Cética, Beard acha que tão cedo as coisas não mudam. É um processo lento. “Antes precisamos alterar a estrutura do poder.”

Opinião por Sérgio Augusto
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