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Biblioteca do exílio e da ausência

Paloma Vidal, argentina radicada no Brasil, e Dinaw Mengestu, etíope que vive nos Estados Unidos, exploram os temas do desterro e da falta paterna para refletir sobre identidade e melancolia

Foto do author Maria Fernanda Rodrigues
Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:

Paloma Vidal nasceu em Buenos Aires em 1975 e aos 2 anos se mudou com a família para o Rio de Janeiro. Só voltou à Argentina a passeio. Com a mesma idade, o etíope Dinaw Mengestu, nascido em 1978, também deixou sua cidade natal, Adis Abeba, e foi viver em Peoria, nos Estados Unidos, onde o pai já estava desde pouco antes dele nascer. Só conheceu a Etiópia depois de publicar, em 2007, o primeiro livro. O motivo do exílio foi político, claro: os militares, do lado dela; e os comunistas, do dele.As coincidências entre os dois escritores não se resumem a essa condição de imigrante, às duas identidades que carregam e ao pouco acesso à história que os antecedeu e definiu. Ambos acabam de lançar o segundo romance aqui, e tanto Mar Azul (Rocco), de Paloma, quanto Uma Perturbação no Ar (Nossa Cultura), de Mengestu, contam, na essência, a mesma história - a elaboração do luto de um pai (quase) desconhecido a partir do encontro com seus últimos objetos e também a reconstrução/invenção de uma memória afetiva. Na realização, o resultado é diverso. Delicado e bom."Nas histórias de filhos que abrem caixas contendo os últimos itens preciosos de seus pais sempre lhes é concedida alguma revelação vital e significativa, ou pelo menos um obscuro segredo é descoberto. Histórias de família, supõem-se, estão repletas dessas coisas, pois, sem elas, como chegar à catarse tão necessária pela qual, supostamente, todos ansiamos?", pergunta-se o jovem Jonas, protagonista de Mengestu.Jonas queria encontrar o pai ali, entender a falta de afeto e o abismo entre os dois e, com, isso, entender a si mesmo. A protagonista de Paloma Vidal também.Ela é uma senhora solitária, apática, sem desejo e sem nome, que vive a rotina de caminhar e nadar para aliviar suas dores e acaba se deparando com os cadernos do pai morto - um argentino que emigrou para o Brasil durante a construção de Brasília e deixou a filha, que já havia sido abandonada por vezes na infância aos cuidados da mãe da amiga ou de vizinhas, mais uma vez para trás. Para sua frustração, só encontra registros de assuntos cotidianos escritos por alguém que vê a memória escapar e precisa de ajuda para lembrar se comeu ou se foi ao banheiro. Nesse novo desencontro com o pai amado, que nunca explicou os motivos para tanta distância, resolve usar o verso de suas páginas para fazer seu próprio diário. Sobre a mãe, um rápido registro, e toda uma fixação que ela tem por água - chuveiro, piscina, mar -, que poderia remeter ao possível único contato entre as duas, ainda no útero.Começa narrando assuntos banais, desinteressantes, ainda meio sem jeito com a escrita. É um momento em que personagem e autora estão tateando o novo. Ao remexer sentimentos renegados, a história ganha novo ânimo. Isso tudo ela vive em seu apartamento no Rio de Janeiro, para onde se muda, refazendo o caminho do pai, depois que a melhor amiga desaparece. A Argentina vivia a ditadura.Para se aproximar da personagem e expressar essa língua nem cá nem lá do imigrante, Paloma pensava em espanhol e escrevia em português. "Vivo muito essa divisão nos planos afetivo e cultural. Há uma certa nostalgia de uma coisa que não vivi e essa ideia de como teria sido se eu tivesse ficado na Argentina, se eu não falasse duas línguas - que parece uma coisa meio positiva, mas ao mesmo tempo você está sempre em falta com uma e com a outra", comenta. Mãe de dois filhos, de 2 e 7 anos, Paloma não consegue falar em espanhol com os meninos. "Achei melhor eles terem a língua deles. Depois, se quiserem, podem fazer um curso. Com duas línguas, a identidade fica um pouco abalada, ficamos sem referência. E a literatura ajuda a construir um espaço próprio."Os pais de Paloma chegaram ao Brasil em 1977 por causa da repressão em seu país, fundaram uma escola para ensinar psicanálise, o ofício deles, tiveram uma segunda filha e ficaram. Além da língua, Paloma herdou deles o interesse pela psicanálise, uma grande ajuda na construção de sua personagem. "Fico querendo me liberar um pouco dessa herança, mas por enquanto ela tem me servido. Tenho uma crença no inconsciente. Vejo isso em funcionamento nos sonhos, nos lapsos, nos atos falhos." A escritora, que é professora no curso de Letras, chegou a fazer um ano de psicologia, mas preferiu recorrer a outro expediente para compreender a alma humana."Mar Azul é um livro sobre o luto, paternidade, o mal e a história recente. Na verdade, o livro é um luto. A análise podia servir para isso, mas a escrita também serve, e o diário acaba sendo o trabalho do luto." Para sua personagem, essa é uma questão sem fronteiras. "E essa é a marca da melancolia dela. Freud faz a distinção entre luto e melancolia: no luto, você faz o trabalho e ele termina; e a melancolia é alguma coisa que fica sem limite, sem borda. Ela não consegue fazer o luto e fica mergulhada nessa melancolia, está lutando contra várias perdas e procurando acreditar que em algum momento poderá viver de outra maneira que não seja com essa marca. Isso é próprio da condição do exilado."Dinaw Mengestu, um dos 20 da lista da New Yorker de escritores promissores com menos de 40 anos, que passa o verão na França e o resto do ano nos Estados Unidos, foi à África pela primeira vez quando terminou As Belas Coisas Que É do Céu Contê-las (Nova Fronteira). O que viu e sentiu lá está misturado em Uma Perturbação no Ar.No livro, Jonas perde o pai e deposita sua morte no mesmo canto escondido em que joga tudo o que considera problemático. Foi com a mãe que aprendeu a "não traduzir as emoções em ações, mantê-las adormecidas, porque, uma vez expressas, não haveria mais como recolhê-las". Porém, seis meses depois da perda, ele abandona a mulher e vai elaborar esse luto refazendo a viagem que os pais, imigrantes etíopes, fizeram 30 anos antes num Monte Carlo vermelho pelo Meio-oeste americano. Era a tentativa de ter a lua de mel que lhes foi negada. Assim que se casaram, Yosef, por questões políticas, deixou o país. Mariam, que mal conhecia o marido, juntou-se a ele nos Estados Unidos só três anos depois. Repetir a viagem foi a forma encontrada por ele para acessar essa parte da história da qual não participou, mas que foi responsável pela vida violenta e infeliz de sua pequena família. Era a primeira vez em que estava verdadeiramente na companhia dos pais, ou da ideia de pais.A viagem de Jonas é, de certa forma, a viagem do autor às suas próprias origens. "É sempre hora de rever o passado. Acredito que escrever sobre esse tempo é parte do processo de escrever sobre o presente. Para entender minha vida na América e na Europa, eu tenho de estar ciente e ser capaz de imaginar e inventar a história que me antecedeu na Etiópia", diz.Enquanto a personagem de Paloma recorre a um diário para recuperar lembranças, Jonas inventa as dele. A elaboração de seu luto começou ao receber a caixa com os pertences do pai, que morreu num abrigo sem ter visto o filho nos dez anos que antecederam a morte, e continuou na sala de aula, enquanto Jonas contava, com detalhes que nunca conheceu, a história dele aos alunos."Existe uma necessidade de imaginação na qual acredito profundamente. A ficção preenche um espaço em nossas vidas que nada mais pode preencher. Jonas está no processo de enterrar o pai. É a ficção que funciona para aproximá-lo de alguém e dele próprio. E isso é o que a literatura faz: ela convida a acreditar em um personagem que tecnicamente não existe na esperança de conhecer algo sobre sua própria vida no final."O rapaz está tão isolado de seu passado e de uma identidade que a única forma de ter paz é aceitar que nunca saberá de tudo e, a partir daí, preencher as lacunas. O ser imigrante, a incapacidade de comunicação e a apatia com que leva a vida também estão na obra.O terceiro romance de Mengestu, que hoje dá aulas na universidade de Georgetown, All Our Names, ainda está inédito. A história se passa entre os anos 1960 e 1970 num país africano sem nome, onde o otimismo da independência recente dá lugar a governos totalitários. Paloma, professora na Unifesp, está em Paris para um projeto de pesquisa. O embrião de seu próximo livro, sobre a linguagem infantil, pode ser visto no blog Lugares Onde Não Estou.Leia trechos dos romances de Paloma e de MengestuTrechos de Mar Azul (Rocco), de Paloma VidalIsto não é um diário, nem uma carta, nem uma autobiografia, nem qualquer outro modo de escrita íntima. Só escrevo porque ele escreveu do outro lado.(...)Quantas são as lembranças que viram próprias porque delas se pode fazer uma história para si e envelhecer com essa companhia?(...)Agora eu penso que se pudesse perguntaria a ele o que pode um pai dar a um filho além do que lhe falta.(...)Viro as páginas do seu caderno e procuro o momento em que ele desistiu de colocar uma palavra na frente da outra para formar uma frase. Me pergunto se houve esse momento ou se até o fim ele ficou tentando um encadeamento que não era mais possível. Me pergunto, mas não tenho coragem de avançar.(...)Se ele tivesse me deixado um diário de viagem as coisas seriam diferentes. Se ele tivesse me deixado fotos. Se ele tivesse narrado a primeira visão da cidade que começava a surgir, vista de cima. O caminho do aeroporto até o lugar onde ficou hospedado. Se tivesse falado das cores e dos ruídos. Ou de como fazia para conseguir uma escova de dente. Se esse diário existisse, será que ele falaria de mim? Se eu tivesse nas mãos o seu diário de viagem, talvez soubesse do destino das cartas que escrevia para ele. É isso: talvez eu soubesse até onde ele sabia o que estava acontecendo comigo.Trechos de Uma Perturbação no Ar (Nossa Cultura), de Dinaw MengestuSem nunca pensar a respeito, tinha me tornado um desses caras que cada vez mais passam as noites solitários, nem incomodados, nem deprimidos com isso, apenas alheios às grandes maquinações da vida social com que se preocupam os outros. Terminada a intimidade forçada da infância, comecei a sentir dificuldades em me manter próximo das pessoas.(...)Assim que meu pai terminou de pronunciar as duas últimas palavras da frase, sentiu aquela mudança brusca e dramática de atmosfera que precede qualquer momento violento. Algo vibrou, zuniu. (...) Ele aprendera, cedo na vida, que antes de qualquer gesto violento há o momento de nascimento desse ato, não como algo que possa ser visto ou sentido, mas pela mudança que se precipita no ar.(...)Eu não apenas era bom em inventar essas coisas, como me sentia grato por elas; somente na ficção podia sair de mim por tempo suficiente para estar totalmente à vontade. (...) Pensava nisso como uma característica distintamente americana - essa capacidade de se livrar de qualquer suposto vínculo com o passado e inventar novos à medida que se avança.(...)Eu até podia não ter criado uma definição sólida de quem eu era, mas isso apenas porque, durante muito tempo, concentrara esforços em tentar parecer que era quase nada - não um anônimo, nem invisível, apenas obscuro o bastante para me confundir com a paisagem e ser rapidamente esquecido. Começara com meu pai, que sempre esperei que nunca me notasse. Foi na companhia dele que aprendi a estar num ambiente sem causar perturbação.(...)Com poucos objetos que haviam ficado da vida de meu pai agora diante de mim, eu sabia que acabaria por abrir a caixa e mergulhar no que havia sido a loucura tranquila de seus últimos dias. Sabendo disso, evitei abri-la pelo tempo que me foi possível.(...)Permaneci no mesmo lugar por 20 ou 30 minutos, tempo suficiente para finalmente juntar coragem e perguntar ao meu pai se, agora que ele estava morto e eu ali, tentando lembrar dele, se ele estava feliz, finalmente.

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