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Bethânia

Cantora arrebata o público paulistano com intensas declarações de amor

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Por Redação
Atualização:

Crítica: Lauro Lisboa Garcia

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Domingo de Páscoa. "Feliz ressurreição", diz Maria Bethânia diante de uma plateia extasiada ao final do espetáculo Carta de Amor, que tem sua última apresentação hoje no HSBC Brasil. Ela agradece comovida à reação da plateia paulistana, que deixa com o coração a palpitar - pelo envolvimento com a música, pelas histórias pessoais espelhadas em cada letra, em cada verso cortante.

Como as paixões inesperadas portadoras da exuberância que extasia, e para as quais não há preparo que dê jeito de controlar, o instrumento de sua voz casa música e poesia, peito aberto, Sangrando (Gonzaguinha), no movimento circular de Canções e Momentos (Milton Nascimento/ Fernando Brant).

A arte de Bethânia é movida a paixão - como a pessoa que sabe dos riscos, da dor que advém de mais uma investida desafiadora, mas não consegue evitar a entrega. Ela joga em cena o quanto é evidente que não se pode viver sem isso, para valer a pena. Saber que a vida é passageira, mas o amor que acende a Fogueira (Angela Ro Ro), não, é um alento, mesmo que rime com sofrimento.

E se pode sonhar com a nostalgia do amor de causar inveja, suspirando por Casablanca (Roque Ferreira) na ilusão brilhante do cinema, com o piano solo de Wagner Tiso remetendo ao preto e branco de As Time Goes By. Ao acordar tão cansado quanto sozinho Na Primeira Manhã (Alceu Valença) que sucede a sensação de agravo, "como quem perde o prumo e desatina", resta à Fera Ferida (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos) mostrar a boca molhada, ainda marcada pelo beijo, contestando quem Negue (Adelino Moreira/ Enzo de Almeida Passos).

E para quem mexe com o orgulho adormecido fazendo Barulho (Roque Ferreira), se responde com afeto: "Porque só beijo quem amo/ Só abraço quem gosto / Só me dou por paixão/ Eu só sei amar direito/ Nasci com esse defeito/ No coração".

Tropeçando no riso, abraçando venenos, no caminho que se faz entre o alvo e a seta, ela pergunta numa súplica de dimensão cósmica Quem me Leva os Meus Fantasmas? (Pedro Abrunhosa): "Quem me salva desta espada / E me diz onde é a estrada?"

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Intermezzo. Sobrevivemos com o coração flechado ao primeiro ato, em que se evidencia a renovação de sonoridades trazidas por Tiso, o novo diretor musical de Bethânia, com boas-vindas aos novos integrantes da banda. No intermezzo instrumental, entram dois clássicos de Milton Nascimento com parceiros: Cais (com Ronaldo Bastos) e Maria Maria (com Fernando Brant). A segunda não cai muito bem, poderia ser substituída por Paula e Bebeto (parceria de Milton com Caetano Veloso), para afirmar melhor no contexto do roteiro que "qualquer maneira de amor vale a pena".

Homenageando o Recife em Festa (Gonzaguinha) e Dora (Dorival Caymmi), pelo baque do maracatu, ela volta no segundo ato, mandando mensagens cifradas e outras de catarse previsível. Flutua em clima de seresta em Lua Branca (Chiquinha Gonzaga) e Adeus, Guacira (Hekel Tavares/ Juracy Camargo) com a mesma força magnética com que pisa duro em Não Enche (Caetano Veloso) do primeiro ato, seja na força da percussão ou na delicadeza de um solo de piano.

É assim que expande o sentido da reserva de domínio do aconchego em duas canções de Arnaldo Antunes (com parceiros). Uma delas é A Nossa Casa ("A nossa casa é onde a gente está / A nossa casa é em todo lugar"). A outra é A Casa É Sua (em cativante reinterpretação, de sorriso desenhado pelo nervo lacrimal), que descreve um ambiente abastecido de quase tudo necessário. Só falta a presença de alguém fundamental para iluminar e colorir os cômodos - como a fusão da melancolia de um e de outro que quer se transformar em alegria, como o ar que alimenta o fogo. O grande Escândalo (Caetano Veloso) é ficar só.

Como quem reza a novena de Dona Canô (1907-2012), do Recôncavo e de Reconvexo (Caetano Veloso), ela ginga nos sambas de roda baianos, arrepia, faz a plateia urrar e lacrimejar de emoção intuitiva e indefinida. Escreve uma ambígua Carta de Amor (Paulo Cesar Pinheiro/ Maria Bethânia) para benefício próprio, espetando quem ousar mexer com seus princípios de liberdade pessoal e espiritual.

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No oásis de Bethânia, a cenografia de Bia Lessa é mínima: lâmpadas penduradas em cordões, repetindo sem erros solução de outros shows, e um enorme tapete de tiras sobre o qual a cantora caminha, dança e corre, em Estado de Poesia (Chico César), com os pés descalços, expressões profundas no olhar e nos gestos ora delicados, ora vigorosos, como nos dedos em figa, nas habituais pulseiras que cintilam e tilintam. É uma força que nunca seca e preenche cada átomo da cena.

Pouco importa que ela tropece em algumas letras, que atravesse a pauta, que recorra a um hit surrado no bis: a intensidade da interpretação supera qualquer obstáculo e quem puder que entenda a declaração de amor. Ao texto inspirado em intercurso com a imagem, tão dramático quanto romântico, é difícil não se render. E deixa dizerem que isso é ridículo.

JJJJ ÓTIMO

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JJJJ ÓTIMO

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