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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Bem que ele avisou

Maquiavel previu os salvadores da pátria, manipulando mentiras, explorando a ignorância, o medo

Atualização:

Numa daquelas revistas francesas de amenidades intelectuais em voga nos anos 1960, talvez Planète, talvez Lui, apareceu um artigo de Henry Miller sobre literatura de banheiro, ilustrado com imagens de miniestantes de livros ao lado de vasos sanitários. Miller, como uns 95% da humanidade, não apreciava dar voltas ao ventre mirando apenas o ralo e os ladrilhos; precisava distrair-se passando os olhos num impresso qualquer. Numa emergência, até o texto de uma bula de remédio esquecida sobre o mármore da pia quebrava um galho.

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Levei anos sonhando em equipar meu banheiro com tais amenidades, mas até hoje só as disponibilizei no lavabo das visitas. Meus convivas nele desfrutam de duas pilhas de 20 livrinhos da Coleção Leitura, lançada pela Paz e Terra no final do século passado. São edições pouco mais volumosas do que aqueles catecismos do Carlos Zéfiro, mas de conteúdo bem menos controverso – à possível exceção do Manifesto Comunista. Há contos de Kafka e Katherine Mansfield, crônicas de Antonio Maria, reflexões de Baudelaire e Hobsbawm, dois tostões de Flaubert e outras prendas do mesmo jaez.

Dia desses, ao me utilizar do lavabo para lavar as mãos, notei que haviam deixado no topo de uma das pilhas O Príncipe, de Nicolau Maquiavel. Peguei-o para uma espiadela, já desconfiado de que sua proeminência na pilha não era fortuita.

Há 500 anos oferecendo lições sobre o poder, como conquistá-lo, usurpá-lo e mantê-lo, O Príncipe é O Pequeno Príncipe dos políticos e dos monarcas. Sempre atual, ainda mais agora, inclusive aqui no Bananão, não é um vade-mécum exclusivo de ou para ardilosos, pérfidos e velhacos, um manual de instruções para tiranos, mas também um guia de sobrevivência a tais criaturas e outras igualmente fichadas como maquiavélicas.

Assim crê a professora de filosofia política (em Yale, Oxford e London School of Economics) Erica Benner, autora de três estudos sobre o mestre florentino, o último dos quais, Be Like the Fox: Machiavelli in His World (Imitando a raposa: o mundo de Maquiavel), particularmente dedicado à defesa da tese de que precisamos aprender a também nos comportar como uma raposa.

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Terry Eagleton o recomendou com entusiasmo no Guardian, mas o que me levou a baixá-lo na internet foi um pingue-pongue entre Benner e Sean Illing, da revista eletrônica Vox. Se não é para se ler correndo uma conversa encimada com o seguinte título: “O que Maquiavel pode nos ensinar sobre Trump e o declínio da democracia liberal”.

Tem-se uma visão parcial e equivocada de Maquiavel, derivada de frases lapidares, que, soltas, isoladas de raciocínios mais longos e descontextualizadas, podem reduzir seu autor às modestas dimensões de um mestre da amoralidade e do cinismo. “É melhor ser temido do que amado.” Esta frase, creio que originalmente de Calígula, ganha novos contornos se citada na íntegra: “Chegamos assim à questão de saber se é melhor ser amado do que temido. A resposta é que seria desejável ser ao mesmo tempo amado e temido, mas que, como tal combinação é difícil, é muito mais seguro ser temido, se for preciso optar”.

O pragmatismo de Maquiavel assusta, sem dúvida. Não é fácil, tão distante de César Bórgia, entender as nuanças de, por exemplo, “Mate se preciso for, mas alcance seu objetivo”. Já a constatação de que “os preconceitos têm mais raízes do que os princípios” dispensa leitura nas entrelinhas.

Benner encontrou, para cada argumento cínico do florentino, um ou dois outros que o contradizem. Os argumentos cínicos – para alguns aficionados, apenas irônicos – são mais estridentes e excitantes, mas as motivações que lhes dá Maquiavel são frequentemente ilógicas ou apenas tíbias. Por vezes parece que ele está parodiando a retórica barata de um político e seus consultores, reservando as motivações mais fortes, convincentes, para advertências supostamente não maquiavélicas, como “conheça os seus limites”; “não tente vencer todas as batalhas”; “sempre siga as regras da lei e aplique-as aos inimigos e aos amigos”.

O grande barato do sábio toscano foi evitar escrever um livro aconselhando líderes e monarcas a serem justos e honrados, como era praxe naquele tempo. Ao ler O Príncipe aprendemos um bocado sobre as maldadezas e torpezas de que eles são capazes, e como somos governados. “Gostaria de ensinar-lhes o caminho do inferno, para que pudessem evitá-lo” – eis o propósito mais nobre da obra, segundo Benner. A seu ver, Maquiavel foi um profundo pensador ético que lutou para manter um elevado padrão moral e restaurar as liberdades democráticas em sua amada Florença.

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Maquiavel previu os salvadores da pátria, que em tempos difíceis sempre encontram quem os apoie, manipulando mentiras, explorando a ignorância, o ressentimento, o medo e as fissuras provocadas pelas desigualdades e pelo sectarismo. O Príncipe alerta para as sociedades divididas em facções, onde as pessoas começam a se ver como inimigas mortais, como grupos de interesses conflitantes, continuamente à beira de um conflito civil.

O que diria ele se ouvisse falar em “pós-verdade” e “fatos alternativos”?, perguntou Sean Issing. Ou diria “isso é antigo” ou “bem que eu avisei”, respondeu Benner.

Opinião por Sérgio Augusto
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