Bellocchio e a mulher esquecida de Mussolini

Cineasta conta como descobriu Ida Dalser, cuja história narra em Vincere

PUBLICIDADE

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Complô. Pier Giorgio Bellochino, filho do diretor, com Filippo Timi e Vittoria Mezzogiorno, que fazem o Duce e a mulher desprezada

 

 

 

Existem os filmes, seus autores e as peculiaridades do mercado. Marco Bellocchio e Guel Arraes são dois autores que não têm nada a ver, um na Itália, outro no Brasil. Bellocchio, desde o primeiro longa - De Punhos Cerrados -, transforma a contestação em arte cinematográfica, como diz Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema. Guel interessa-se mais pela linguagem, mesmo consciente de que todo filme é sempre político - e a política faz parte de sua formação (seu pai, o ex-governador Miguel Arraes, de Pernambuco, foi cassado pelo regime militar, nos anos 1960).A política volta nos novos filmes de Bellocchio e Arraes. Os dois, e aí entra o mercado, estreiam hoje, juntos. Um transforma a política em tragédia, e seu filme é melhor, deixemos logo claro - Vincere, de Bellocchio. O outro, a trata como farsa e que também fique claro que não se trata do horror que você vai encontrar nas avaliação de muitos críticos - O Bem Amado, de Guel. Ambos conversaram com a reportagem do Estado. Bellocchio, pelo telefone. Guel ao vivo, em São Paulo, no lançamento do filme, segunda-feira. A entrevista de Guel está na página seguinte.Fascismo e família são temas recorrentes em seus filmes, mas como surgiu o interesse pela mulher esquecida de Mussolini?A historiografia oficial fez o possível e até o impossível para esquecer Ida Dalser e apagá-la da história, mas é uma trama tão expressiva do que ocorreu na Itália, sob o fascismo que seu fantasma voltou para nos assombrar. Leio muito sobre a época, mas só recentemente tomei conhecimento da existência de Ida, assistindo a um documentário de TV. Interessei-me por ela e pesquisei por conta própria. Descobri dois ou três livros e, quanto mais lia, me dava conta da complexidade de Ida e que como sua história é cinematográfica. Me decidi pelo filme, fui à região em que nasceu, ao hospital em que esteve confinada. O filme nasceu um pouco empurrado pela personagem, mas também pelo clima dos lugares e pelo estranhamento que a simples menção dessa história provocava nas pessoas.Ida é obsessiva. De que maneira isso foi um atrativo a mais?Mas esse era todo o atrativo. De um lado, temos a máquina fascista que destrói o indivíduo. De outro, uma mulher que resiste bravamente. Ida era obcecada pelo casamento. O Duce (Mussolini) foi um grande sedutor. O sucesso com as mulheres fazia parte de sua mística pessoal, e ele a cultivava. Suas amantes, quando as largava, eram intocáveis. Embora o regime fascista fosse baseado em princípios como legitimidade do casamento e da família, as ex-amantes mantinham seu status. Ida poderia ter feito esse jogo, mas o que ela reivindicava era o reconhecimento como esposa, a legítima perante Deus. Ida nunca foi razoável, transigindo com sua consciência. Foi o que a perdeu, e a seu filho, para o qual pedia reconhecimento, mas justamente a obsessão faz dela uma figura trágica.Tem algo de Antígona, não?Por mais que me tenha documentado, e sobre um assunto no qual a documentação é vaga, o filme é uma obra de ficção. Não tenho registro de como Ida falava, só o de Mussolini. Mas a própria personagem foi-se impondo. Antígona, sim, mas também Medeia.Vittoria Mezzogiorno nunca esteve melhor e Filippo Timi é uma revelação. Quem é ele?Vittoria, como você diz, vestiu a personagem de Ida, mas ele é realmente um grande achado. Timi consegue ser autoritário, assustador, sedutor, vigoroso. Ao contrário dela, tínhamos um extenso material de arquivo sobre o Duce, e isso me permitiu incorporar esse material à narração. Existem diferenças físicas entre ele e Mussolini, mas o temperamento é tão forte que o espectador aceita a passagem do Mussolini real para o ficcional, e vice-versa.Sua ideia era aproximar o Duce de Berlusconi?O fascismo é muito forte na Itália, sob Berlusconi. Há um retorno, mas não nos mesmos termos. Temos uma democracia autoritária, mas não mais os crimes políticos, a violência, as restrições às liberdades individuais. Mas não pensava nessa associação. O espectador é que é livre para fazê-la.Seu cinema é sempre operístico e Vincere não foge à regra.Verdi, Puccini, a ópera é nossa cultura, está no sangue. Agora mesmo estou em Mântua, fazendo um telefilme sobre o Rigoletto. É a primeira vez que Plácido Domingo faz o papel. Está sendo uma experiência extraordinária.PARA ENTENDERUm episódio que os italianos apagaram Logo no começo de Vincere, Benito Mussolini (foto) e Ida Dalser se conhecem no instituto de beleza que ela possui. O diálogo é fictício, mas o espírito da cena não poderia ser mais real. O jovem Benito é um militante socialista sem um vintém. Participa de uma manifestação contra a guerra. Sedutor e viril, ele conquista a mulher com seu magnetismo. Tornam-se amantes. Ela lhe dá dinheiro para construir um jornal. Só que Mussolini muda. Passa a apoiar a guerra. Torna-se fascista.Tudo isso é história, assim como é história o que ocorreu com Ida. O problema é que esta segunda parte - o próprio filme se divide em duas partes - não é tão conhecida. Mussolini casou-se, construiu outra vida na qual não cabiam mais nem Ida nem o filho que tiveram. Ela nunca desistiu de se proclamar a esposa legítima perante Deus (haviam se casado no religioso). Mussolini e seus asseclas reagiram. Ida Dalser foi tratada como louca, o filho criado em internatos. Bellocchio faz com que o mesmo ator, Filippo Timi, interprete Mussolini e o filho renegado. Numa cena, o garoto recria, para colegas, o que havia de bufão no Duce. O filme é exemplar como ficcionalização de um episódio histórico envolto em brumas. / L.C.M.Trailer. nome

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.