
31 de janeiro de 2011 | 00h00
A biografia ficou ali na mesinha da entrada da minha casa, na capa o rosto sádico do ditador com o braço envolto em um cachorro, os dois a me olharem. Sabia que estava ferrado. Não teria como escapar do livro. Mil páginas de crueldade, húbris, ódio, tortura, genocídio e a civilização enlouquecida.
Digeri histórias da 2.ª Guerra durante minha infância toda nos Estados Unidos junto com aqueles cereais carnavalescos feitos para aparecerem em destaque na recém-lançada televisão em cores. Montava pequenos modelos em plástico de Spitfires e Zeros - aviões estrelas das batalhas aéreas - com uma cola de cheiro forte e bom. Assistia a documentários dedicados à guerra na escola desde pequeno. Conhecia batalhas. Não teria como resistir à leitura.
Comecei o livrão de Hitler na fazenda do meu cunhado, onde passei uma semana no início do ano. Estou na página 631. Todo dia leio um pouco. A qualidade da reconstrução histórica impressiona. Kershaw chega a descrever os gestos feitos pelo Führer ao tomar conhecimento de notícias chaves da guerra. Mas não levo a obra no ônibus para não assustar os outros passageiros. (Você se sentaria ao lado de alguém perdido em um livro de sete centímetros de grossura com a cara de Hitler na capa?) Ainda bem que sei como acaba. Caso contrário, estaria mais assustado até com a ruindade dos nazistas. A narrativa é irresistível. É o mal em estado puro.
Por sorte, tenho um personal especialista na 2.ª Guerra na figura do meu amigo professor Antônio Pedro Tota. Voltei a praticar o pedestrianismo com ele na Avenida Sumaré, acompanhado do filósofo e designer gráfico Marcão Sismotto. É um trio de fácil reconhecimento para quem passa de automóvel. Três senhores de uma certa idade, com as marcas das décadas de 60 e 70 nos corpos e nos estilos de vestuário esportivo. Embora, verdade seja dita, apesar de seus 60 e tantos anos, o professor esteja em forma. De tanto fazer o pedestrianismo, como diz o Marcão, está com a "barriga de tanquinho".
Nesse trio, o professor faz o papel do pessimista. Reclama que a civilização está em declínio, que ninguém mais ouve Thelonious Monk (jazzista americano), a internet é um engodo e há automóveis demais, sem nem falar da televisão. Isso quando está de bom humor.
Tenho discutido com ele a biografia de Hitler na Avenida Sumaré. O professor sabe tudo sobre a 2.ª Guerra. Escreveu livros sobre o assunto. Consegue explicar a conexão feita nas mentes doentias dos nazistas entre o antissemitismo e o anticomunismo, para dar apenas um exemplo.
Semana passada, montei uma armadilha intelectual para o professor Tota. Ponderei que diante da minha leitura ficava evidente como a civilização se aprimorou de 70 anos para cá. Apesar dos problemas atuais, a miséria, o aquecimento global, o declínio no gosto musical, não é possível imaginar a repetição da barbárie do Hitler nos dias de hoje. O mundo é outro. Melhorou. Aquela violência profunda, fundada no mito de raça, não é mais possível, não na escala nazista.
Passávamos, juro, debaixo da estação Sumaré de metrô, aquela decorada com fotos de desaparecidos políticos do tempo da ditadura. O professor andou uns 20 metros em silêncio. Pensava. Depois respondeu: "Melhorou, sim, pelo menos para alguns".
A caminhada prosseguiu. Mudamos de assunto. Marcão explicou para o professor o que é uma barriga de tanquinho.
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