Vou arriscar descrever um desconhecido. Acho que é um homem branco de mais de 50 anos. Pode ou não ter perdido o emprego na recessão da Dilma, mas dificilmente mora numa favela. Seus filhos não tiveram que se atirar no chão para evitar balas perdidas na escola. Não sei o nome dele, sei apenas que é um covarde.
Pensei no cidadão anônimo ouvindo o relato sobre um estudo feito em 1950 nos EUA. Naquele ano, a Sociedade Americana de Ciência Política constatou que o país sofria de falta de polarização. É isto mesmo. Havia tanto acordo entre o público que se identificava como republicano ou democrata que, os sociólogos concluíram, isto levava à apatia do eleitor, neste país onde o voto não é obrigatório.
Não é preciso encomendar novo estudo para concluir o oposto. A ideia de interesses compartilhados foi substituída por uma balcanização mental em que o objetivo não é a convivência ou a persuasão, mas a destruição do outro. Foi este tribalismo primitivo que animou um senhor a intimidar e expulsar o ator Marcelo Adnet de uma via pública.
O melhor imitador de políticos brasileiros, falsamente acusado de ter forjado uma gravação quando o candidato presidencial vencedor se recuperava do atentado no hospital, teve a audácia de fazer compras num mercado da Barra da Tijuca. A Barra, além de ser o domicílio do novo presidente do Brasil, é o bairro que deu ao nosso anedotário cultural a emergente da Barra, a socialite nova rica, símbolo do consumismo dos anos 1990, quando a explosão imobiliária atraiu para lá moradores dos subúrbios.
Pois o dito estranho, incomodado não se sabe se com a imitação hilariante que Adnet fez de seu candidato ou com a declaração de voto no candidato derrotado que igualmente imitou, fez o odioso sinal de revólver com a mão e gritou para Adnet, “vaza, vagabundo!” Segundo o comediante, o agressor começou a receber adesões e ele foi embora sem chamar a polícia.
Sabemos que o morador da Barra se tornou presidente com vasto apoio de cariocas pobres que antes votavam no ex-presidente encarcerado. Sociólogos e historiadores vão se debruçar sobre o enorme deslocamento expressado nas urnas e examinar diferenças de classe na escolha do candidato. Sabemos que boa parte do eleitorado não quer que ver seus filhos e netos fazendo gesto de arma com os dedinhos e votou por desencanto com políticos tradicionais. Nos Estados Unidos, 8 milhões de eleitores da Barack Obama votaram no atual presidente, em 2016, e é difícil imaginar que o fizeram por simpatia com o racismo nada disfarçado pelo candidato que escolheram.
Não é o morador da Rocinha que se sente incomodado com um comediante. É gente como o brutamontes que acostou o ator no mercado da Barra. Estudos de psicologia social mostram que o prognosticador mais forte de identidade tribal não é convicção política racional ou estresse econômico, é a noção de ter seu status ameaçado. Ele pode ser ameaçado por vários motivos, como costumes ou a emergência do status de um outro racial.
Amanhã, os americanos vão às urnas, na mais importante eleição das últimas décadas. O presidente já jogou a toalha em relação à Câmara, que pode ser retomada pelos democratas e saiu em campanha furiosa para garantir o controle do Senado. Ele continua a governar para a minoria que o elegeu e radicalizou o discurso racial na reta final, inventando uma invasão de refugiados negada até pelo Pentágono.
Num culto de domingo, no Rio, o presidente eleito do Brasil prometeu governar para o país todo. Quem sabe, ao contrário do americano que admira, e por quase ter perdido a vida num atentado, vai se esforçar para desarmar os bullies que dizem agir em seu nome de suas armas imaginárias. Antes que se tornem reais.