13 de fevereiro de 2022 | 03h00
Quando netos e netas envelhecem, os avós reaparecem no passado distante e nebuloso que, subitamente, adquire nitidez.
Vejo uma senhora de cabelo grisalho à minha espera no pátio, sentada à sombra da parreira, que sobrevivia na quentura e na umidade do Amazonas. Pobre parreira! As uvas pareciam pequeninas pérolas esverdeadas, quase translúcidas; brilhavam, atrofiadas, no pergolado do pátio, e eram azedas que nem limão. Tinha cachos perolados, belos e inúteis. A verdadeira delícia da parreira eram as folhas que enrolavam o arroz e a carne moída dos charutinhos. A outra delícia era o tempero. Pensem no inimitável tempero de sua avó, de todas as avós do mundo, embora muitos avôs guardem magníficos segredos da arte culinária.
Ia tanta gente para aqueles almoços, que a parreira ficava quase desfolhada. Eu me afastava da algaravia e me refugiava no quintal para saborear charutinhos e matrinxã assado com molho de gergelim. Via os animais que minha avó criava, e me aproximava de um cordeirinho malhado, órfão solitário nos fundos da casa. Acariciava-o, oferecia-lhe folhas de charutinhos, que ele também saboreava. Depois do almoço, a gente conversava sob um jambeiro. Ouvia balidos agudos, sem saber qual sentimento emanava daquela voz, que parecia mais viva que a própria vida. Às vezes os balidos soavam alegres e zombeteiros; outras, eram tão tristes que me tiravam o apetite. O que dizia nosso olhar de criança?
Lembro de um domingo em que não almocei. Era a véspera da despedida de um dos meus tios, um homem duro, ríspido comigo e com o mundo. Naquela manhã, ele disse à mãe dele que ia passar um tempo numa cidade longe, muito longe.
“Um tempo?”, perguntou minha avó. “Quanto tempo? Em qual cidade?”
Perguntas sem resposta. Foi um dia triste para a senhora grisalha. E tristíssimo para mim, não pela partida daquele tio, que não regressou, mas pela morte do cordeirinho malhado. Depois soube que o viajante exigira que a mãe preparasse cordeiro assado e arroz com lentilhas.
De fato, há filhos absurdamente exigentes, e tios insuportáveis, cruéis. O olhar triste da matriarca me lembrava o do cordeiro. Quantos sacrifícios não são feitos em vão?
O poema A Cabra, de Umberto Saba, expressa o que senti naquela tarde, há mais de meio século:
“Aquele balido, sempre o mesmo, era irmão
da minha dor. E eu respondi, primeiro
por graça, depois porque a dor é eterna,
tem uma voz e não varia.
Essa voz ouvia
gemer numa cabra solitária”.
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