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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Aviões e suicídios

Atualização:

A notícia da semana nos tirou do sujo da "corrupção altruísta" (em nome de um partido, utopia ou ideal religioso ou secular) e da "egoísta" (enriquecimento pessoal) para o sofrimento compartilhado de um outro dispositivo voador: o desastre do helicóptero que matou o filho de Geraldo Alckmin, governador do Estado de São Paulo, um dos políticos mas importantes do País. Escrevo pensando no pai e na mãe que perderam o que criaram, no amor que nos aproxima dos deuses e do imenso sofrimento da perda de um filho - preço da nossa humanidade. Somos fadados aos acidentes - esses inesperados difíceis de assimilar numa era de alta tecnologia. Mapeamos o mundo, mas não o controlamos porque ele é dinamizado por nós e nenhum homem é ilha ou máquina. Aliás, a máquina ou a prótese, como dizia Freud, é o justo oposto da humanidade por seu automatismo e o seu dispositivo de ser ligado e desligado sem, entretanto, morrer. Podemos saber se o rebento será menino ou menina, mas não podemos prever o inesperado dos desastres. Sabemos o dia do nascimento, mas não nos é dado conhecer o dia do funeral...A guerra, envolvendo as identidades que nascem do etnocentrismo presente em todos os grupos humanos e o uso da violência na luta pelo poder, são desastres programados. Elas confirmam a inferioridade do "outro". Que me perdoem os idiotas em socioantropologia, a consciência do "nós" depende "deles". Todos os sujeitos são construídos. Ninguém vira holandês tomando uma injeção, mas holandeses viram holandeses em confronto com alemães, brasileiros ou japoneses. Como ninguém pediu para nascer. Somos obrigatoriamente produzidos por quem nos "criou", num palco e capítulo não escolhidos de uma novela em curso da qual, um dia, saímos.As programações coletivas fabricam universos e identidades por meio de língua, regime político, economia e religião - esses dispositivos primordiais - como dizia Fustel de Coulanges - para enxergar o cosmos sem nenhuma equação matemática ou "big-bang". Um conceito que, com a devida vênia, só poderia ter nascido na civilização dos caubóis a qual, finalmente, se aprimorou com a invenção de um dispositivo capaz de infinita destruição: a bomba atômica! Este sim, é um dispositivo disposto porque tem, inclusive, a disposição de destruir, disponibilizando os próprios inventores. A morte absoluta do outro tem a ver com a nossa própria morte. Só o cronista enrolado escreve tudo isso para chegar a um ponto intuído na semana passada. O suicídio seria, como escreveu Camus, "o único problema filosófico verdadeiramente sério". Por quê? Porque ele implica um julgamento fundado na liberdade de decidir se a vida merece ou não ser vivida. Esse "merece" situa o sujeito como dono da vida, algo assustador em sistemas nos quais o viver não nos pertence, pois nos foi dado por Deus. Se Camus tivesse lido o Durkheim que, em 1897, escreveu O Suicídio, ele teria sido enriquecido com um tipo de suicídio que rouba do sujeito essa escolha tão cara aos existencialistas. Pois, como demonstra Durkheim, o suicídio pode resultar de um surto de melancolia individual ou de uma obrigação imposta pela sociedade. Durkheim chama o primeiro tipo de "suicídio egoísta"; o segundo ele chama de "altruísta". Essa forma de suicídio complica os axiomas individualistas, porque ele é motivado por forças externas ao indivíduo como a honra, o patriotismo e o amor. Os políticos japoneses se matam quando são vergonhosamente apanhados no roubo dos dinheiros públicos. Romeu e Julieta se mataram por amor, como ocorreu com os mártires católicos na velha Roma e com os heróis de guerra que morrem em nome da pátria cuja identidade, com devida vênia aos idiotas que imaginam que elas são fixas e concretas, se torna maior do que os seus interesses.No Brasil, Vargas torna-se admirável, aos meus olhos molhados pela velhice, como o único caso da história do nosso país em que um ex-ditador se confrontou consigo mesmo e resolveu dar um tiro no próprio coração - esse símbolo maior do país por ele possuído. Ao perder o controle do contexto político, saiu da cena da realidade corrompida para "entrar na história" - o palco das mitologias.A tipologia de Durkheim funciona quando se usa o olhar distanciado. Mas com uma lupa, vemos que todos os suicídios são uma mistura complexa de egoísmo e altruísmo. Pois a chave do suicídio do copiloto jaz no desejo de sair da crise pessoal, mas também na vontade de morrer de modo colossal, incluindo outras pessoas e, num avião, o que transforma o autoassassinato numa tragédia em estado puro. Eis um drama idêntico dos assassinatos coletivos em escolas e templos, os quais imortalizam seus infames programadores que acabam o mundo e, ato contínuo, se matam com a mesma impiedade.Mortes sem dono. Mortes aparentemente sem uma causa, exceto pela sua imediata e atraente celebrização - essa chave de trevas do terrorismo como instrumento político. Suicidar-se é revelador de um profundo sentimento antipaterno. É, talvez, uma recusa do fato que todos fomos feitos por e para os outros. Ninguém pode ser o seu próprio outro a não ser no suicídio.

Opinião por Roberto Damatta
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