EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Autoras corajosas que retrataram um Brasil difícil

Imprimi o e-mail da Secretaria de Cultura do Estado e desci. Leria enquanto estivesse comendo o bolo de banana do The Little Coffee Shop, de uma porta só na rua Lisboa. Sabia que o e-mail era importante, mas eu caminhava aguilhoado pelas notícias que tinham me atropelado.

PUBLICIDADE

Atualização:

Abalado porque somente naquele dia soube da morte de Consuelo de Castro. Ela já tinha sido cremada. Fomos amigos certa época, bem chegados, num tempo em que não se dava muitas risadas. Queríamos escrever, gostávamos de escrever, ela fazia uma arte difícil, que jamais consegui dominar, a dramaturgia. Eu tinha dez anos mais do que ela. Ao morrer, final da semana passada, ela fazia 70, enquanto eu, dentro de algumas semanas, chego aos 80. Sobrevivi. Estive entre alguns que leram sua peça À Flor da Pele, muito antes da encenação, e, por sua vez, Consuelo leu no original meu primeiro romance Bebel Que a Cidade Comeu. Ela tinha olhos verdes, que às vezes eram azuis, linda, talentosa, louca, despachada, briguenta, sempre indignada. Naqueles tempos, indignação era o que nos fazia ferver, viver e produzir. Essa indignação está voltando acelerada neste país dividido pelo ódio e pela deterioração/podridão ética/política.

PUBLICIDADE

Havia quatro mulheres corajosas na dramaturgia. Consuelo de Castro, Isabel Câmara, Leilah Assumpção e Maria Adelaide Amaral. Restam estas duas, Isabel morreu dez anos antes que Consuelo. Acrescento nessa geração o José Vicente de Hoje É Dia de Rock e O Assalto, que também se foi, e Antonio Bivar. Consuelo, adorável e explosiva criatura. Irônica, humorada, reconstituiu como poucos o que foram os anos 1960 e 70.

Tudo isso ela colocou em peças como Caminho de Volta, A Cidade Impossível de Pedro Santana, O Grande Amor de Nossas Vidas, Louco Circo do Desejo. Quando ela trabalhou na editora Abril, eu tinha acabado de sair. Os corredores daquela casa fervilhavam nos anos 1960 e 70. Talvez um dia se escreva sobre o celeiro de talento para teatro, literatura e ensaios que foi a Abril. Depois, Consuelo e eu nos distanciamos, assim como perdi vários de minha geração, por afastamento ou morte. Nos afastamos e Consuelo foi para o Rio, fez publicidade, teve dois filhos. Nem sequer os conheci. Loucuras desse tipo de vida que levamos.

As pessoas continuam a partir, esse câncer não poupa ninguém. Tempos de câncer e corrupção. Consuelo. Nem deu para ir ao seu velório. Semaninha a ser lembrada. Também se foi o Ivald Granato, aos 66 anos. Era quase meu vizinho. As pessoas que foram nossas amigas, ícones, testemunhas dos tempos vividos, estão desaparecendo. E o câncer, praga, peste, seja o que for, deste século nos leva os que amamos e os que vieram para narrar e ajudar a mudar o mundo. Assim foi, nesta segunda-feira, com o cineasta iraniano Abbas Kiarostami, aos 76 anos, um cineasta singular.

O cotidiano me chama. Não quero. No café diminuto, sou devolvido ao dia a dia pelo e-mail da Secretaria de Cultura, que rebate comentários meus em relação ao cancelamento do Festival da Mantiqueira. Gisele Turteltaub, cortesmente, me diz que a Mantiqueira foi cancelada em função da reformulação dos programas da secretaria, com o objetivo de ampliar o número de cidades beneficiadas. “A Mantiqueira cumpriu sua missão, enquanto o Festival de Literatura Infantil de Monteiro Lobato será ampliado, assim como o Festival de Iguape, que teve programação reforçada.” Ótimo, viva. A Viagem Literária – que sempre elogiei – levará 170 eventos para interior e litoral. E, neste ano, o número de cidades que receberá a Viagem subirá de 80 para 85. Sem esquecer as dezenas de Oficinas Culturais mantidas pela secretaria. Aqui está, explicação dada. No entanto, minha estranheza em relação ao final da Mantiqueira continua. Por que mexer em time que está ganhando, diz o clichê? A função de formar leitores jamais termina, sempre deve ser solidificada. Continuem com a Mantiqueira, que formou uma estrutura, e ampliem Iguape e outras mais. Nem Cristo considerou sua missão cumprida. Plantar uma árvore frutífera e, assim que ela começar a dar frutos, cortá-la, porque já cumpriu sua missão? Não! Regá-la e alimentá-la para que os frutos sejam doces e saborosos.

Publicidade

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.