Autor subverteu literatura americana

Ele e os demais escritores beats abriram os Estados Unidos para outras culturas, introduzindo o zen, valorizando mitos indígenas e recuperando tradição oral

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Por Agencia Estado
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Quando deu entrada em um hospital da Flórida para morrer, em 21 de outubro de 1969, Jack Kerouac tinha 47 anos, mas aparentava muito mais. A ex-esperança do futebol americano (um de seus sonhos de infância) tinha engordado. O escritor mulherengo estava inchado pelo álcool e, sobre uma última foto, o poeta Allen Ginsberg escreveu: "Jack parecia-se bastante com seu pai, tinha a corpulência de W.C. Fields e era percorrido por um frêmito mortal." O laudo médico atestava "hemorragia gastrointestinal massiva". Kerouac foi enterrado a 24 de outubro em Lowell, Massachusets, sua cidade natal. A sensação da morte acompanhava-o, porém, havia muito tempo. Jack Kerouac era um autêntico louco furioso, cuja necessidade urgente de solidão (principalmente depois do sucesso) imperava e dominava sua vida. Apegava-se a uma tristeza plácida entre o bourbon ("O álcool é uma droga doce"), estimulantes, mantras budistas e reminiscências de sua educação católica. A fama instântanea provocada por On the Road, Pé na Estrada (livro que amargou seis anos de recusa até ser publicado em 1957 e virar best seller), acompanhada de uma crítica feroz aos membros da beat generation (termo que ele cunhou), trouxe conseqüências devastadoras sobre Kerouac, que passaria a se afastar das estradas que o celebrizaram (curiosamente não tinha carteira de habilitação), isolando-se no quarto da casa de sua mãe e se encharcando de vinho barato. O que o incomodava eram mais as críticas ao seu estilo de vida que ao seu trabalho, cuja seriedade era ignorada ou desmerecida - o escritor Truman Capote, por exemplo, chegou a dizer que o que Kerouac fazia não era literatura, mas "datilografia". Kerouac, assim como os demais escritores beats trouxe mudanças significativas à literatura americana, como a abertura para outras culturas, a introdução do zen e do budismo, o resgate dos mitos indígenas e a recuperação da tradição oral da poesia. Jazz e bop - Kerouac explicava que seu método de composição tomava como base a respiração e a improvisação do jazz e do bop, ou seja, nada de pausa para pensar a palavra certa, mas uma acumulação infantil e até escatológica de palavras concentradas. Ele queria sua linguagem capturando o pensamento em movimento com o máximo de fidelidade. Com isso, revolucionou a maneira de viver e pensar de milhões de pessoas, a começar por Bob Dylan, que se tornou seu fã a partir de 1959. O mesmo aconteceria com Tom Waits, Jim Jamursch, Dennis Hopper e outros. Apesar da consagração popular, Kerouac buscava a solidão. Em 1957, consegue um trabalho: vigia de incêndios no alto do Monte Hazomeen, um pico que domina a grande floresta do Estado de Washington. Lá, ele meditava em busca do significado da existência. Era um homem de grandes aspirações, mas corroído por dúvidas atrozes. Malandragem - Na casa da mãe, onde se refugiou, era constantemente vigiado por ela, uma ex-faxineira que rezava diariamente pela alma do filho vadio. Proibia-o ainda de levar para a casa suas conquistas ocasionais ("Isso não é católico!" repreendia) e, quando podia, esvaziava seus bolsos para impedi-lo de praticar alguma malandragem. Pouco antes de sua morte, Kerouac manifestou-se favorável à intervenção americana no Vietnã, num estranho impulso de patriotismo. O grande denunciador do obscurantismo americano dos anos 50 deixava-se levar por propostas anti-semitas, racistas e homófobas. Amargo e exaltado, ele cultivava a ambigüidade. Terminou no ostracismo, deixando US$ 91 para seus herdeiros.

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