Autor de 'Manual Prático do Ódio' troca o conflito externo pelo interno

Nos oito anos em que passou escrevendo 'Deus Foi Almoçar', Ferréz se casou e tornou-se pai

PUBLICIDADE

Por Maria Fernanda Rodrigues - O Estado de S.Paulo
Atualização:

Não foi exatamente porque nasceu e vive até hoje na periferia que Ferréz escolheu escrever sobre essa realidade. A bandeira veio por acaso. “Eu tinha escrito um livro de poesia concreta em 1997. Era bem introspectivo, falava de amor. No lançamento, vi que só tinha gente da quebrada em que eu morava. Eles me diziam que tinham comprado o livro, mas que não tinham encontrado a história deles lá”, conta. Ferréz decidiu fazer um livro para os amigos, mesmo que não vendesse nada. Escreveu Capão Pecado, imprimiu quatro ou cinco cópias e distribuiu para os vizinhos. E as pessoas começaram a comentar, dar pitaco e a pedir ainda mais realidade. “Na vida real, o cara bate a moto. Você vai pôr os negocinhos de novela?”, ouviu de um leitor sobre determinado episódio. A história começou a chamar a atenção e foi parar no Notícias Populares. Seu nome foi se popularizando e ele encontrou editora. E aconteceu o que Ferréz não imaginava. Sua obra começou a ser lida fora da favela e em outros países, inclusive - Capão Pecado já foi editado em três; Manual Prático do Ódio, que veio depois, em sete. Tem conto publicado na Grécia. Já foi divulgar seu trabalho na Alemanha, Itália, Espanha, Colômbia, e acaba de voltar da Argentina. Cerca de 80% dos convites que o escritor recebe para eventos literários atendem a uma espécie de cota da periferia. Ele não rejeita o rótulo, e aceita com graça o convite para mesas sobre literatura e resistência, literatura marginal e por aí vai. Mas também sente falta de falar sobre o seu ofício. “É importante o autor ter um compromisso social. Não fujo e não quero fugir disso. Faço isso, mas também quero ter esse espaço para falar da literatura em si”, diz o fã de Herman Hesse. O movimento de Ferréz em ampliar seus temas e centrá-los em questões internas do ser humano mostra um amadurecimento do escritor. Nesses oito anos em que passou escrevendo Deus Foi Almoçar - outros livros foram publicados no período -, ele se casou e tornou-se pai de Dana, hoje com 5 anos, leu muito e aprendeu a tocar piano por recomendação terapêutica. “Estou mais calmo. Já arrumei muito inimigo, processo e problema. Hoje estou menos burro e mais maduro.” Foi um tempo de dúvidas. Ele não sabia se estava fazendo um livro bom, já que o novo romance é diferente de tudo o que produziu até então. Também não tinha com quem conversar - lia, às vezes, trechos para o amigo e também escritor Paulo Lins, mas só. A obra mostra um pouco dessas incertezas do autor e ainda a questão da mudança. “Há muita coisa sobre família e eu quis mostrar também como é a dor da separação. Passei por uma separação de pais quando já estava mais velho, mas sou testemunha de que isso machuca muito. O livro traz isso também: até onde você pode segurar a estrutura de uma família? O leitor é quem decidirá se o personagem vai querer segurar a família dele.” Em suas andanças, seja nos saraus da periferia, nas escolas públicas ou particulares, Ferréz pôde conhecer melhor seus leitores e passou a gostar muito desse contato. “Não existe isso de escrever só para si. A gente não tem só a necessidade de publicar. Queremos que as pessoas leiam, comentem.” E por causa desse contato mais próximo com os jovens, tem sido visto como um exemplo. “Quando não tem mais jeito, quando o aluno está bebendo ou bateu no professor, a escola fala: chama o Ferréz”, brinca. Mas ele acha difícil enxergar o exemplo positivo e ser esse modelo. Uma coisa é certa: para falar dos problemas sociais da periferia ou de temas caros à literatura, ele sempre estará disponível. “Prometi que se um dia eu fosse alguém, que se tivesse um dom artístico, que ia atender até o último cara em todos os eventos. E fico até o último. Para mim é importante.” Calixto, o herói inerte de Ferréz, é o reflexo de uma nova sociedade que já vive razoavelmente bem, não luta exatamente para colocar comida dentro de casa, mas é vítima do consumismo e protagonista de relacionamentos rasos ou de vidas solitárias. Ferréz é pessimista com relação ao futuro. Uma caminhada pelas vielas do Capão e ele esbraveja com a quantidade de carros por ali. Logo ele, um colecionador carros antigos - tem um Landau, um Fusca e uma Variant. Mais tarde, explicou seu desencanto. “Tenho certeza de que não estamos indo para um bom lugar. O caminho do consumo, de se satisfazer mostrando para o outro que é melhor que ele, que tem status enquanto está devendo 50 prestações, não é bom. Veio o acesso aos bens, mas não veio a educação, o conhecimento e o amor pela arte.”Deus Foi Almoçar está sendo encarado por Ferréz como o início de sua libertação. O próximo será a libertação total, garante. Ele não abre o tema, mas diz que a dedicatória deste lançamento ao ocultista Papus é uma pista.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.