Autêntico nocaute

HQ recupera história real do lutador do campo de concentração

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Por Ubiratan Brasil
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Começou com um golpe de sorte – o quadrinista alemão Reinhard Kleist, conhecido por narrar em HQ a biografia de famosos como Johnny Cash, Elvis Presley e Fidel Castro, fazia pesquisas em uma livraria quando um título chamou sua atenção: Um Dia, Eu Contarei Tudo, obra assinada por Alan Scott Haft. Era a misteriosa (mas fantástica) história do pugilista polonês Hertzko Haft que, durante a 2.ª Guerra Mundial, foi preso por ser judeu e levado para campos de concentração.“Ele só sobreviveu porque ganhou a simpatia dos soldados da SS, que organizavam lutas de boxe entre os prisioneiros e Haft era muito habilidoso”, conta Kleist que, emocionado com essa trajetória, comprou imediatamente o livro, devorou o texto e criou a graphic novel O Boxeador, lançada agora pela editora gaúcha 8Inverso.Aos 43 anos, Kleist é conhecido no universo dos quadrinhos pelas biografias que desenhou de Johnny Cash, Elvis Presley e Fidel Castro. Nenhuma, no entanto, fez tanto sucesso como O Boxeador que, lançada no ano passado na Alemanha, já lhe rendeu prêmios em Munique e, principalmente, no Festival de Quadrinhos de Lyon, na França, uma das mecas das HQs, que lhe concedeu seu prêmio máximo no ano passado.“Foi um trabalho diferente, pois, ao contrário dos outros biografados, eu não conhecia nada a seu respeito”, contou Kleist ao Estado, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que terminou no domingo. “Meu ponto de partida foi o livro, escrito pelo filho do pugilista.” Na verdade, a primeira luta enfrentada pelo quadrinista foi convencer Haft filho a liberar os direitos da obra para transformá-la em HQ. “Ele desconfiava de que o resultado ficasse bom.”Ao ver os quadrinhos de Kleist, no entanto, Alan Scott Haft tornou-se um de seus principais fãs, divulgando entusiasticamente a obra, que ganhará tradução nos Estados Unidos no próximo ano. Uma edição há muito esperada, pois foi para a América que Hertzko Haft emigrou, depois de terminada a guerra. Lá, com o nome modificado para Harry Haft (também usou as alcunhas de Herschel e Hertzka), lutou como profissional, até mesmo contra Rocky Marciano, seu derradeiro combate, em 1949, quando perdeu por nocaute.Encerrada a carreira, Haft nunca mais fez alguma menção sobre seu passado, mesmo com a família. O pesado período sofrido na guerra, porém, deixou-lhe marcas na personalidade, especialmente nos arroubos violentos com que se dirigia ao filho. “Foi só no fim de sua vida que ele me contou o drama vivido nos campos de concentração”, explica Haft filho, no texto do livro. Disposto a não deixar que tal história morresse no esquecimento, ele conseguiu todos os detalhes para publicar a biografia do pai.Hertzko Haft nasceu em 1925, em uma cidade polonesa chamada Belchatow. Quando começou a 2.ª Guerra Mundial, em setembro de 1939, Belchatow foi uma das primeiras localidades bombardeadas e tomadas pelos alemães. Logo, os judeus foram obrigados a viver em guetos, com trabalhos forçados. Em 1941, Haft foi preso e conduzido para diversos campos de prisioneiros, até chegar a Auschwitz-Birkenau.Lá, recebeu seu número de prisioneiro, tatuado no braço: 144738. Mais tarde, foi transferido para um campo anexo a Auschwitz, onde trabalhou em minas de carvão. Foi lá que Haft começou a lutar boxe protegido por um oficial da SS, cujo nome não se lembra e que, na versão em quadrinhos, é identificado como “Schneider”.Ele não era o único – no início da década de 1940, alguns boxeadores europeus foram presos e muitos eram obrigados a entreter os oficiais nazistas. Na verdade, diversos esportistas tiveram o mesmo destino. Em um pequeno, mas alentado ensaio (publicado como posfácio de O Boxeador), o historiador Martin Krauss conta que, em quase todos os campos de concentração, prisioneiros eram obrigados a participar de competições de acordo com suas aptidões físicas.Assim, em Theresienstadt, havia uma liga de futebol; em Auschwitz, existia uma barra fixa de ginástica. Até mesmo troféus de handebol eram concedidos. Krauss cita o trabalho de outra pesquisadora, Veronika Springmann, que se dedica a detalhar o esporte nos campos de concentração, área ainda pouquíssima conhecida.Segundo ela, havia outro motivo, mais importante do que promover o entretenimento das tropas alemãs: a demanda da indústria de armamentos por força de trabalho. Com isso, seria possível compreender, segundo ela, o fortalecimento físico de alguns grupos específicos de prisioneiros.O boxe, porém, teve um papel primordial. E aqui, observa Martin Krauss, entrava também um componente de sadismo, pois várias lutas só podiam terminar com a morte de um dos oponentes. E a lista de lutadores não continha apenas desconhecidos como Hertzko Haft – profissionais de nível, como o tunisiano Victor “Young” Perez, que foi campeão mundial na categoria mosca, e o italiano Leone Efrati, que chegou a ficar entre os dez melhores no ranking dos penas, foram obrigados a subir ao ringue sob berros dos alemães.Haft não era lutador até ser obrigado pelos nazistas a participar de combates. Logo, percebeu ter aptidão, além de lhe garantir a sobrevivência. Sua condição física privilegiada, aliás, foi essencial para que suportasse as “marchas da morte” a que foi forçado a seguir, ou seja, constantes trocas de campos de concentração. Isso ocorreu já no fim da guerra, em 1945, quando Haft presenciou cenas aterrorizantes, como casos de canibalismo.Encerrado o conflito, Haft permaneceu na Baviera onde, em 1946, venceu um torneio de boxe para refugiados judeus, diante de 10 mil pessoas. Dois anos depois, já vivendo nos Estados Unidos, ele começou a lutar profissionalmente, em 1949. Nesse período, participou de 21 combates, acumulando 13 vitórias (5 por nocaute).Analfabeto, até o fim da vida Haft só conseguia ler os quadrinhos e os resultados das rodadas, na seção de esportes dos jornais, segundo seu filho, Alan, que o descreveu como um homem “cruel e violento”. Os motivos, Alan descobriu depois, quando o pai lhe contou a própria história. Hertzko Haft morreu em 2007.Sucesso. A Bienal do Livro do Rio terminou no domingo com ligeira queda de público em relação a 2011 (660 mil ante 670mil), mas crescimento nas vendas: 2,8 milhões de livros em 2011 ante 3,5 milhões agora. Entre os palestrantes, Ruy Castro lançou, no sábado, o “Manifesto dos Intelectuais Brasileiros Contra a Censura às Biografias”, redigido por nomes como Zuenir Ventura e Cristóvão Tezza, entre outros. O BOXEADORAutor: Reinhard KleistTradutor: Augusto PaimEditora: 8Inverso (102 páginas, R$ 54)

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