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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Atrocidades que vêm de longe

Poeta e ativista, Casement mapeou a desumanidade contra nativos no Congo e na Amazônia

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Por Milton Hatoum
Atualização:

“Deus tenha piedade do índio e da árvore que o protege”, escreveu o irlandês Roger Casement (1864-1916) em 24 de novembro de 1910 no Diário da Amazônia (Edusp, org. de Laura Izarra e Mariana Bolfarine). Casement foi poeta, ativista pelos direitos humanos, ambientalista avant la lettre e, por fim, libertário. Em sua última década de vida, dedicou-se à luta pela emancipação da Irlanda. Preso e julgado por seu envolvimento revolucionário, difamado por ser homossexual, foi executado em 1916. Não por acaso é citado no Ulysses de Joyce e num poema de Yeats, dois ilustres conterrâneos. Entre 1884 e 1904, viveu em várias regiões da África, primeiro como funcionário de Leopoldo II, rei da Bélgica que se apossou de uma vasta área e a nomeou Estado Livre do Congo. Os colonizadores belgas escravizaram africanos e os forçaram a extrair borracha. Casement testemunhou assassinatos e torturas com mutilações. Segundo Adam Hochschild, essas atrocidades, somadas a epidemias, resultaram na morte de 10 milhões de escravizados. Depois de presenciar esse horror, Casement escreveu e divulgou um relatório minucioso, que foi decisivo para que a Inglaterra e outros países pressionassem Leopoldo II a criar uma comissão independente de inquérito sobre essa carnificina.

Reprodução de 'Diário da Amazônia', de Roger Casement Foto: Reprodução/Edusp

Após ingressar no serviço diplomático britânico, Casement foi cônsul-geral em Santos e em Belém. Entre 1910 e 1911, viajou ao rio Putumayo, onde indígenas de várias etnias foram escravizados e forçados a trabalhar nos seringais de La Chorrera. Muitos foram torturados e assassinados pelos capangas de Julio César Arana, gerente-geral da Peruvian Amazon Company. Na introdução ao Diário da Amazônia, o historiador Angus Mitchell ressalta o empenho de Casement em “mapear a paisagem da desumanidade e questionar as atividades coloniais e seu poder financeiro. Sua abordagem resgatou, deliberadamente, a voz indígena e a deslocou para o centro do relato investigativo”. Casement corria o risco de ser assassinado, mas seu senso de justiça e seu amor à floresta e aos povos originários o fizeram seguir. Dom Phillips e Bruno Pereira também eram movidos por esse mesmo idealismo, amor e postura ética. O assassinato de ambos poderia ter sido evitado. Não se trata apenas da “ausência” do poder público, mas também – e principalmente – da cumplicidade entre o Estado brasileiro e grupos facinorosos que destroem a floresta e ameaçam e aniquilam indígenas, jornalistas e ambientalistas. 

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