Atrizes em alta - Um trabalhador intelectual

Depois da chilena Paulina Garcia, é a vez da romena Luminita Gheorghiu roubar a cena em A Child's Pose Morto na sexta, o jornalista e tradutor Geraldo Galvão Ferraz era movido pela curiosidade, alheio a modismos

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Por Redação
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É sempre temerário fazer prognósticos antecipados num festival que ainda está no meio e Berlim não é a exceção. A chilena Paulina Garcia surgiu como fortíssima candidata ao prêmio de interpretação feminina e é possível continuar torcendo por ela, no belo filme de Sebastian Lelio, Gloria. Ontem, num breve encontro no palácio do festival, quando o repórter esperava para entrevistar o russo Boris Khlebnikov, de A Long and Happy Life, o próprio Lelio disse estar surpreso com a receptividade a seu filme. "Sempre achei que a história que queria contar valia a pena, mas o carinho das pessoas por Gloria superou minha expectativa." Paulina continua uma forte candidata a melhor atriz, mas ontem foi a vez da romena Luminita Gheorghiu dar seu show.A Romênia foi uma das cinematografias que se impuseram nos anos 2000, nos grandes eventos internacionais de cinema. Seus autores ainda não acabaram de nos surpreender, mas é Luminita quem domina Child's Pose, de Calin Peter Netzer, no papel de uma mãe dominadora que tenta proteger o filho que matou um garoto num acidente carro. Logo no começo do filme, Luminita, fumando sem parar, queixa-se para a cunhada da desatenção do filho, que se recusa a vê-la mesmo em seu aniversário. A recepção, a seguir, reúne políticos, artistas, toda a classe dirigente romena. São vulgares, prepotentes. E aí, ocorre a tragédia. A leoa, cutucada, reage. Luminita passa como um trator sobre policiais, a família da criança morta. Só o que lhe interessa é o filho, mesmo que ele a odeie. É uma personagem detestável, própria para outra representação misantrópica da sociedade e do mundo.E, então, as coisas começam a mudar e ela se humaniza. Duas cenas são exemplares - o diálogo, enfim, com o filho, e a visita à família do morto. Despida da sua capa de arrogância, ela termina chorando com a mãe do menino. E quando começa a falar no filho, é como se ele também tivesse morrido - para ela. Child's Pose foi um dos melhores filmes até agora, com o chileno e o russo. Há outro acidente de carro, com morte, em Layla Fourie, da sul-africana Pia Marais. Apesar de todas as mudanças na sociedade do país, um resquício de racismo ainda permanece e aflora, por toques, quando uma mulher negra atropela um homem (branco) na estrada e tenta socorre-lo. Quando ele morre, Layla tenta esconder o crime, lançando o cadáver no lixo. Ela viaja com o filho, um garoto a quem cria sozinha. E ocorre de, em seguida, a protagonista se envolver com o filho da vítima. Que situação, hein?Pia tinha um material forte, mas o excesso de coincidência e o fato de querer abordar muitos temas ao mesmo tempo termina por diluir o que poderia e até deveria ser o impacto de seu filme. O romeno Netzer vai mais direto ao ponto. Explora conflitos familiares, sociais. De repente, a divisão de classes de seu filme tem alguma coisa de A Separação, de Asghar Farhadi, que iniciou aqui mesmo em Berlim, há dois anos, sua escalada internacional. Mas as atriz que faz Layla, Rayna Campbell, é muito boa - a Berlinale de 2013 arrisca-se a entrar para a história por suas atrizes (e mulheres) fortes.Tem havido muitas histórias ou, pelo menos, situações de lesbianismo. No drama franco-canadense Vic + Flo Saw a Bear, de Denis Cote, Pierrette Robitaille e Romaine Bohringer conheceram-se na cadeia e agora Pierrette, a Victoire, vai para esta cabana na floresta, onde morava o tio. Florence (Romaine) chega para desestabilizar a tentativa da outra de se estabelecer, porque ela é bissex e também gosta de homens, mas principalmente porque atrás de Flo também vem a bandida da historia. O filme possui certa originalidade, mas não é nem uma experiencia estética radical nem o tipo de filme a que se pode ter prazer assistindo.O estado do mundo não era melhor no século 18, retratado na nova versão de A Religiosa, de Denis Diderot. Nos anos 1966, Jacques Rivette fez sua versão com Anna Karina e ela não apenas ficou famosa pela qualidade como também porque, na época, foi alvo de censura na Franca, gerando um árduo debate sobre a liberdade de expressão. A nova versão é assinada por Guillaume Nicklous e revela uma jovem atriz talentosíssima, Pauline Etienne, mas se você já tem duvidas quanto a Igreja, não há de ser esse filme que vai renovar sua fé. Simone Simonin, a religiosa, vira noviça contra a vontade. No convento, é submetida a todo tipo de brutalidade física. Simone sobrevive e é enviada para outro convento, onde a madre superiora, desta vez, a enche de favores, esperando retribuição. Lesbianismo de novo. Isabelle Huppert faz a madre. O papel é relativamente pequeno, mas a grande lição de Isabelle é de que não existem papéis menores para grandes atrizes.Geraldo Galvão Ferraz, o Kiko, falecido sexta-feira passada em São Sebastião, aos 71 anos, pertenceu a uma tradição jornalística sempre ameaçada de extinção. Era o repórter, o redator, o editor, o crítico de formação sólida, conhecedor de diversos idiomas e que se colocava na vida como um trabalhador intelectual, com tudo o que isso implica. Apaixonado por literatura, ele se tornou um tradutor brilhante - sem apelar para teorias de bolso que transformam a tradução em mistificação - da poesia e prosa castelhana, francesa, inglesa, italiana. Sem pose, sem arrogância, navegava com desembaraço pelo pop e o erudito. Sério, mas sem perder o humor no trato das coisas. Pelo entusiasmo na execução das tarefas e no convívio, levado por uma inteligência aguda, irreverente e bem humorada, mantendo um distanciamento esperto de antigo sábio chinês, devia se divertir com tudo isso - aí talvez esteja o segredo de seu sucesso profissional e humano.Ele começou sua carreira profissional nos anos 1960, na Tribuna de Santos, como tradutor de autores do naipe de Paul Valéry e André Breton, e divulgando jovens escritores brasileiros, como lembra sua ex-mulher Leda Rita Cintra. Depois passou a trabalhar no Jornal da Tarde, dando prosseguimento ao trabalho iniciado na Baixada. Um de seus principais focos era a literatura produzida no País e suas novidades. Atentou para Raduan Nassar, Charles Kieffer, Orides Fontella e Ana Cristina César, na função de editor de cultura daquela histórica publicação do Grupo Estado. Passou por vários jornais e revistas, como a Playboy, Folha da Tarde, IstoÉ, Cláudia, Estadinho, Caderno 2 e revista Cult. Foi jurado de diversos concursos literários e em 2003 acabou se transferindo para Nova York, onde atuou como crítico de cinema. Era tão versátil quanto livre em sua atuação jornalística e literária, o que refletia a formação num ambiente familiar impregnado de cultura em suas diversas modalidades. Filho do romancista e jornalista Geraldo Ferraz (Doramundo), e da também escritora Patrícia Galvão, Pagu, ele se revelaria um jornalista para quem a atividade profissional é uma expansão óbvia de sua personalidade. Era movido pela curiosidade intelectual sobretudo, sem se preocupar com modismos e tendências de momento. Se teve inimigos foi certamente por causa do seu talento. Pop. Lia e curtia de Agatha Christie a William Faulkner e Stephen King, sem nenhum tipo de afetação e sem pretender impor suas idiossincrasias aos leitores. Navegava pelo pop e pela chamada alta literatura sem maiores problemas. Simenon e Asimov, Neruda e ficção científica, que conhecia muito bem. Era também notável seu interesse e conhecimento em matéria de quadrinhos. Nessa última área foi editor do Grilo, nos anos 1980, onde publicou Robert Crumb, Guido Crepax, Wolinsky, Hugo Pratt e Phillipe Druillet, mais Will Eisner, o gênio do Spirit. Se isso é o que se chama inquietação intelectual, acrescente-se que, como tradutor, verteu para o português de Stephen King a Dee Brown, autor de Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, a respeito do extermínio de índios nos Estados Unidos, o que lhe valeu um Prêmio Jabuti. Ex-colega de redação e amiga, Terciane Alves fala de Ferraz da seguinte maneira:"Kiko repudiava o egocentrismo profissional, era generoso com os mais jovens focas. Como raros poderiam ser. Tinha asco de eventos sociais. Gostava mesmo é de sentar à mesa com estagiários e falar de receitas culinárias, acepipes, como dizia. Kiko amava a juventude, se refazia nela." E se atualizava com o mesmo entusiasmo que lia, via filmes e ouvia músicas (também gostava de jogos de botão, preparar sanduíches, tomar vinho e tocar bongô nos momentos de descontração). Terciane observa que "nos anos 2000, com mais de 60 anos, ele foi trabalhar com internet, ficou fascinado com programas de edição on-line. E foi editor do portal O Site na fase da bolha da internet."Além disso dedicou-se a pesquisar a obra de sua mãe, chegando a descobrir que ela também tinha sido King Sheldon, pseudônimo adotado para assinar histórias policiais. Junto com Maria Lúcia Teixeira Furlani, publicou a fotobiografia de Pagu - foi a última vez que seu nome apareceu num volume impresso. Junto com Furlani, mantinha o site Pagu. Além de Leda, Geraldo Galvão Ferraz deixa os filhos Alexandre e Antônio Eduardo.Com o agravamento do diabetes, ele passou os últimos meses de vida em São Sebastião, no litoral paulista, onde faleceu e foi sepultado. No próximo dia 16, sábado, será celebrada uma missa em sua homenagem na Igreja São Gabriel (Avenida São Gabriel, 108, no Itaim, em São Paulo), às 17 horas.

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