Chadwick Boseman em 2018 Magdalena Wosinska|NYT
Ele tratava um câncer de cólon havia quatro anos, segundo a família
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Chadwick Boseman em 2018 Magdalena Wosinska|NYT
Morreu nesta sexta-feira, aos 43 anos, o ator americano Chadwick Boseman. Mais conhecido por protagonizar os filmes do Pantera Negra, da Marvel Studios, Boseman também interpretou o músico James Brown e o jogador de beisebol Jackie Robinson no cinema. Seu empresário informou que ele não resistiu ao tratamento de um câncer de cólon.
O ator foi diagnosticado com câncer há quatro anos, afirmou a família em um comunicado. "Um verdadeiro batalhador, Chadwick resistiu durante todo o processo e levou a vocês muitos filmes que vieram a amar", afirma a nota. "Vários filmes foram gravados durante e entre muitas cirurgias e tratamentos de quimioterapia. Foi a honra de sua carreira dar vida ao King T'Challa em Pantera Negra", disse a família.
Boseman nunca falou publicamente sobre a doença. O ator morreu em sua casa, na região de Los Angeles, ao lado da mulher e outros familiares. Ele completaria 44 anos em 29 de novembro. Nascido na Carolina do Sul, filho de uma enfermeira e de um empresário da indústria de tapeçaria, Boseman tinha raízes em Serra Leoa, na África ocidental.
Chadwick Boseman se tornou o primeiro ator negro a interpretar um super-herói como protagonista em seu próprio filme do universo Marvel. Pantera Negra, ambientado no reino fictício de Wakanda, foi adorado pela crítica e pelo público, e se tornou o primeiro filme baseado em quadrinhos a concorrer na categoria de Melhor Filme no Oscar. Foi um enorme sucesso de bilheteria, arrecadanda US$ 1 bilhão no mundo todo.
Pantera Negra foi celebrado como um momento cultural importante por seu elenco majoritariamente negro e por subverter os estereótipos ao mostrar um país africano próspero que acolhe refugiados e estende sua cultura e tecnologia às nações mais pobres.
No início da carreira, Boseman interpretou os ícones negros Jackie Robinson, em 42, filme de 2013 de Brian Helgeland e que teve a estreia de maior bilheteria para um filme de beisebol da história de Hollywood, e James Brown, em Get on Up. Por este filme de 2014, ele foi incluído pela revista Time na lista das dez melhores atuações daquele ano.
Recentemente, ele apareceu em Destacamento Blood, do diretor Spike Lee, e estrelaria a continuação de Pantera Negra, prevista para 2022.
COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS
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29 de agosto de 2020 | 13h40
Chadwick Boseman partiu para Wakanda. São muitas mortes que aconteceram em agosto: dona Chica Xavier, professor Jorge Portugal, o historiador Jaime Sodré... Todos ícones para várias gerações. Chadwick representa o rosto de um mundo ideal. Quem não queria morar em Wakanda? Eu, já um pai de família, adulto, me tornei criança e sonhei com esse herói negro e com aquele mundo em que as cores e as atitudes eram exemplos para os meus desejos inimagináveis.
Tão jovem, Chadwick já tinha emprestado seu rosto para personagens como o jogador Jackie Robinson (42), o cantor James Brown (Get on Up), o juiz Thurgood Marshall (Marshall: Igualdade e Justiça) e, mais recentemente, interpretou Norman Earl “Stormin’ em Destacamento Blood, do Spike Lee. Todos eles referências para a gente se encontrar e se perceber possível.
Os heróis que ele viveu são importantes, portanto, para as nossas formações coletiva e individual. E todos são filmes que, além de tudo, nos entretém – os rolezinhos de jovens negros e negras indo aos cinemas em grupos gigantescos para assistir Pantera Negra é uma imagem inesquecível e a comprovação de como essa história alimentou o nosso orgulho de sermos quem somos.
Fiquei triste porque num ano tão duro como 2020 a morte deste rosto heroico é por demais forte para não ser simbólica. Fica aqui minha gratidão e o pensamento de que tal qual ele diz em Pantera Negra “a morte não é o fim... é mais um ponto de partida”. Que a gente possa se inspirar nesses heróis negros que ele viveu e construir outros para termos forças para seguir.
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29 de agosto de 2020 | 11h59
Atualizado 31 de agosto de 2020 | 11h29
Todo mundo se lembra do apresentador Jimmy Kimmel no Oscar de 2018. A cada 15 ou 20 minutos, ele atualizava os números da bilheteria de Pantera Negra. Mais US$ 1 milhão, mais um, mais um. Pantera Negra estourava. Virou um fenômeno social, como, aliás, fora Mulher Maravilha um ano antes. Depois do empoderamento feminino, o afago na autoestima do público negro. No ano passado o blockbuster de Ryan Coogler somou várias estatuetas na premiação da Academia. Wakanda forever. Wakanda agora está de luto pela morte de seu príncipe.
Chadwick Boseman lutava havia quatro anos contra um câncer de cólon. Morreu na noite de sexta-feira, 28. Tinha 43 anos. Era ator, diretor e roteirista. Antes de adentrar glorioso no Universo Marvel, criando o super-herói negro, destacou-se por seus retratos de personagens reais. Foi Jackie Robinson em 42, James Brown em Get on Up e Thurgood Marshall em Marshall. Além da sua aventura solo como Pantera Negra, o personagem apareceu em Capitão América: Guerra Civil, Os Vingadores: Guerra Infinita e Os Vingadores: Ultimato.
Na época, ninguém sabia, já que a discrição foi total, mas ele filmava suas cenas de ação alternadamente com sessões de quimioterapia para tentar fazer regredir a doença.
Revelava coragem, e resiliência. Boseman nasceu em Anderson, na Carolina do Sul, em 29 de novembro de 1976. Formou-se na TL Hanna High School em 1995. Escreveu sua primeira peça, Crossroads, e a encenou na escola, depois que um colega foi baleado e morto. Começava uma carreira de militância. Prosseguiu os estudos na Universidade Howard, em Washington, onde se formou, em 2000, em artes plásticas e direção. Seu sonho era ser escritor e diretor, e ele foi fazer um curso de interpretação na Inglaterra, convencido de que ajudaria no seu relacionamento com atores.
Estreou na TV em 2003. Participou de episódios de séries como Law & Order, CSI New York e ER. Dirigia uma peça off-Broadway no East Village quando foi chamado a fazer um teste para ator no filme 42, sobre o lendário jogador de beisebol Jackie Robinson. Chegou a pensar em desistir do teste, porque preferia ser diretor e dramaturgo, mas foi aprovado e sua vida tomou outro rumo.
Interpretou guerreiros. O super-herói T’Challah, o deus Tot (em Deuses do Egito). Interpretou os heróis do cotidiano, que enfrentaram o preconceito. O astro do beisebol Robinson, o cantor, compositor e produtor musical James Brown. Rapidamente, num período curto de tempo, fez história e virou referência no imaginário do público afro-americano.
Nas redes sociais, amigos e fãs lamentaram a morte de Chadwick. “Obrigado, Chadwick, por tudo que você nos deu. Precisávamos disso e vamos sempre dar valor a isso”, escreveu Samuel L. Jackson. E Oprah Winfrey: “Que alma gentil e abençoada. Grandeza entre cirurgias e sessões de químio. A coragem, a força que isso exige. Esse é o rosto da dignidade”.
Boseman não teve tempo de fazer Pantera Negra 2, mas deixou pronto um filme produzido por Denzel Washington e coestrelado por Viola Davis. Ma Rainey's Black Bottom é uma adaptação da peça de mesmo nome, de 1982, do dramaturgo August Wilson.
A morte de Boseman ocorre num momento crucial da vida norte-americana, depois do assassinato brutal de George Floyd, que desencadeou uma onda de protestos que reverberou pelos EUA e o mundo, e depois de outro policial dar 7 tiros em Jacob Blake, também negro, pelas costas. Os EUA vivem os maiores protestos raciais desde o movimento por direitos civis, nos anos 1960. Em Destacamento Blood, Spike Lee fez de Boseman o porta-voz do discurso politizado da época.
I can't breathe, Black Lives Matter. Boseman morreu em casa, em Los Angeles, acompanhado pela mulher, a cantora Taylor Simone Ledward, com quem se casou em outubro do ano passado. Enquanto isso, as ruas são tomadas pela comoção e o presidente Donald Trump, candidato à reeleição, exalta a lei e a ordem, glorificando a polícia e demonizando os manifestantes. Vidas negras importam. A de Chadwick Boseman, infelizmente, extingiu-se cedo demais.
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29 de agosto de 2020 | 00h53
Atualizado 31 de agosto de 2020 | 11h35
Após o anúncio da morte do ator Chadwick Boseman, estrela de Pantera Negra, na noite desta sexta-feira, 28, atores, diretores, atletas e políticos se manifestaram nas redes sociais. Mark Ruffalo e Chris Evans escreveram sobre a experiência de trabalhar ao lado de Boseman. Kamala Harris, candidata à vice-presidência dos Estados Unidos, disse que ele era "brilhante e humilde". A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood considerou "perda imensurável". Outros artistas, como Samuel L. Jackson, também expressaram pesar pela morte de Boseman.
Boseman lutava secretamente contra um câncer de cólon há quatro anos, período em que seus filmes de maior sucesso foram gravados e o alçaram à fama. Além de ter vivido o primeiro super-herói negro da Marvel, o Pantera Negra, em quatro filmes, o ator também fez parte do elenco de Destacamento Blood, do diretor Spike Lee.
O ator Mark Ruffalo, colega de elenco de Boseman nos dois últimos filmes dos Vingadores, disse no Twitter: "Foi uma grande honra trabalhar com você e conhecê-lo. Que ser humano generoso e sincero. Você acreditava na natureza sagrada do trabalho e deu tudo de si".
It was the highest honor getting to work with you and getting to know you. What a generous and sincere human being. You believed in the sacred nature of the work and gave your all. Much love to your family. And much love from all of us left here.
— Mark Ruffalo (@MarkRuffalo) August 29, 2020
Chris Evans, que interpreta o Capitão América e também trabalhou com Boseman, escreveu: "Chadwick era especial. Um verdadeiro pioneiro. Ele era um artista profundamente comprometido e constantemente curioso. Poucos atores têm tanto poder e versatilidade. Ele ainda tinha tanto para criar. Serei eternamente grato pela nossa amizade".
Kamala Harris, candidata à vice-presidência dos Estados Unidos, também lamentou a morte do ator. A última publicação de Boseman nas redes sociais foi uma foto com Harris, compartilhada no dia em que sua candidatura foi anunciada. "Coração partido. Meu amigo Chadwick Boseman era brilhante, gentil, culto e humilde. Ele se foi muito cedo, mas sua vida fez a diferença", disse Kamala.
Heartbroken. My friend and fellow Bison Chadwick Boseman was brilliant, kind, learned, and humble. He left too early but his life made a difference. Sending my sincere condolences to his family. pic.twitter.com/C5xGkUi9oZ
— Kamala Harris (@KamalaHarris) August 29, 2020
Ator Samuel L. Jackson também prestou homenagem ao amigo. "Obrigado, Chadwick Boseman, por tudo que você nos deu. Nós precisávamos e sempre iremos apreciá-lo. Um artista e irmão talentoso e generoso, que fará muita falta. Descanse em paz (RIP)."
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood publicou nas redes sociais que a perda do artista é imensurável. "De Black Panther a Da 5 Bloods, Chadwick Boseman trouxe força e luz para a tela, todas as vezes."
Joe Biden também lamentou a morte do ator. "O verdadeiro poder de Chadwick Boseman era maior que tudo que vimos nas telas. Do Pantera Negra a Jackie Robinson, ele inspirou gerações e mostrou que eles podem ser tudo que quiserem ser - até super-heróis."
The true power of @ChadwickBoseman was bigger than anything we saw on screen. From the Black Panther to Jackie Robinson, he inspired generations and showed them they can be anything they want — even super heroes. Jill and I are praying for his loved ones at this difficult time.
— Joe Biden (@JoeBiden) August 29, 2020
Kevin Feige, presidente da Marvel, divulgou um comunicado em que diz que a morte de Chadwick é devastadora: "Ele era o nosso T'Challa, nosso Pantera Negra e nosso querido amigo", disse ele. "Toda vez que ele pisava no set, radiava carisma e alegria, e toda vez que aparecia nas telas, ele criava algo realmente indelével. Ninguém era melhor em trazer grandes homens à vida. Ele era esperto, gentil, poderoso e forte quanto qualquer pessoa que ele interpretou."
Marvel Studios também lamentou a morte do artista. "Nossos corações estão partidos e nossos pensamentos estão com a família de Chadwick Boseman. Seu legado viverá para sempre. Descanse em paz."
Brie Larson, a "Capitã Marvel", escreveu sobre a sua relação com o ator: "Chadwick era alguém que radiava poder e paz, que representava algo muito maior que ele, que tirava um tempo para saber como você estava e dizia palavras de incentivo quando você estava insegura. Tenho orgulho das lembranças que eu tenho".
— Brie Larson (@brielarson) August 29, 2020
Em referência ao reino fictício de 'Wakanda', DC Comics prestou condolências pela morte de Chadwick. "A um herói que transcende universos. 'Wakanda' para sempre. Descanse em 'poder', Chadwick."
A atriz Halle Berry também falou sobre Boseman nas redes sociais: "um homem incrível de talento imensurável, que viveu apesar de suas batalhas pessoais. Você nunca sabe o que as pessoas ao seu redor podem estar passando - trate-as com gentileza e aprecie cada minuto juntos".
Here’s to an incredible man with immeasurable talent, who leaned into life regardless of his personal battles. You never truly know what the people around you might be going through - treat them with kindness and cherish every minute you have together. RIP #ChadwickBoseman pic.twitter.com/NaNC5GKuut
— Halle Berry (@halleberry) August 29, 2020
A atriz Viola Davis diz que não há palavras para expressar sua devastação em perdê-lo. "Seu talento, seu espírito, seu coração, sua autenticidade. Foi uma honra trabalhar com você, poder te conhecer. Descanse bem, meu príncipe. Que voos de anjos cantem para teu descanso celestial. Eu te amo."
A apresentadora Oprah Winfrey também lamentou a morte do ator de "Pantera Negra". "Que alma gentil e talentosa. Mostrando-nos toda aquela grandeza entre cirurgias e quimioterapias. A coragem, a força e o poder necessários para fazer isso. É o significado da dignidade."
A cineasta Ava DuVernay também lamentou a perda. "Que você tenha um lindo retorno, rei. Sentiremos muito a sua falta."
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15 de junho de 2020 | 14h13
O projeto era anterior, mas Destacamento Blood, novo “joint” de Spike Lee, chega à Netflix em pleno calor das manifestações antirracistas provocadas pelo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos.
Em Destacamento Blood trata-se, nada menos, que reavaliar um dos aspectos “esquecidos” da questão racial norte-americana, a que se refere à participação dos negros na Guerra do Vietnã. Há aí uma flagrante desproporção numérica. Embora apenas 12% da população norte-americana seja negra, cerca de 1/3 do contingente mandado para a luta no sudeste asiático era composto por soldados afro-americanos. Ou seja, foi a parte da população preferencialmente escolhida para servir de bucha de canhão numa guerra imperialista sem sentido e que, afinal, terminou em derrota.
Essa realidade é pouco estudada e, sobretudo, pouco retratada numa filmografia que privilegia heróis brancos e improváveis como Rambo e Chuck Norris.
A estratégia de Spike Lee ao abordar esse tema “esquecido” da História é múltipla e imaginativa. Mostra o reencontro de antigos companheiros do tal Destacamento Blood, reunidos para um projeto comum. Depois de 50 anos, retornam ao cenário da guerra por dois motivos bem distintos - tentar resgatar os restos mortais de um companheiro morto em combate. E, também, reencontrar um tesouro em barras de ouro que lá deixaram enterrado.
À maneira de Spike Lee, o filme se constrói em montagem bastante forte, que mescla a história ficcional a material de arquivo. Por exemplo, começa com uma fala do pugilista Muhammad Ali explicando porque se recusou a lutar no Vietnã (apenas para lembrar: Ali foi punido com a perda do título de campeão mundial, que só viria a recuperar tempos depois). Outras figuras essenciais da luta antirracista aparecem, como a ativista Angela Davis e os líderes Malcolm X e Martin Luther King, ambos assassinados.
Lee também entra em diálogo com o próprio cinema em citações alusivas a filmes como Tesouro de Sierra Madre (John Huston), Greed - Ouro e Maldição (Erich von Stroheim) e Apocalypse Now (Francis Ford Coppola). Os dois primeiros são clássicos sobre a ambição que leva à loucura e ao crime. O terceiro é sobre a demência da própria guerra, inspirado numa obra-prima sobre a exploração colonial, O Coração das Trevas, de Joseph Conrad.
Com esse denso material de referência, Lee oferece várias camadas de sentido a esse reencontro entre amigos. Estão lá pela simbologia do luto, que implica repatriar restos mortais de um companheiro que, além de líder do destacamento, era uma referência para todos eles. Depois, recuperar o butim que resolveria os problemas econômicos de todos eles. Vale dizer que os dois propósitos não se somam, a generosidade de um e o interesse egoístico de outro quase se contradizem.
Há também uma assimetria radical dentro do grupo. Um deles, o mais problemático, votou em Donald Trump para presidente. Usa, orgulhosamente, o boné com a inscrição Make America Great Again (Faça a América grande de novo). Divisa do nacionalismo populista, tosco, antiglobalista e intervencionista, marca registrada de Trump, e que encontrou ressonância entre os ressentidos do eleitorado norte-americano.
Há então essa fricção interna no grupo heterogêneo formado por Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr. ) e Eddie (Norm Lewis). O herói morto, referência do pelotão, e que aparece como “fantasma” ao longo da trama, é ‘Stormin’ Norman (Chadwick Boseman, de Pantera Negra). Os quatro sobreviventes se encontram num hotel da cidade de Ho Chi Minh (ex-Saigon), no Vietnã, e partem para a aventura.
Spike Lee vem trabalhando a questão racial nos Estados Unidos como viga mestra de sua carreira, de sua estreia com Faça a Coisa Certa, passando por Febre da Selva, A Hora do Show, Infiltrado na Klan até este Destacamento Blood. De maneira geral, acerta nesse trabalho de contestação de um racismo estrutural, que, apesar de tantas lutas, lá existe e persiste, como existe aqui no Brasil. Volta e meia ele explode, como aconteceu em Charlottesville (incorporado em Infiltrado na Klan) e na morte de George Floyd, asfixiado por um policial branco (dialogando, a posteriori, com este Destacamento Blood).
A sintonia com a chaga do racismo estrutural joga a favor do filme. No entanto, nem sempre o conjunto funciona bem do ponto de vista da construção narrativa. Algumas escolhas de Lee são interessantes - como usar os mesmos atores para representar os personagens tanto no tempo atual como quando eram jovens soldados no Vietnã. Essa dissonância causa efeito interessante e é marca de ousadia. No entanto, a trilha sonora, maravilhosa quando usa a música de Marvin Gaye, às vezes se torna solene e opressiva, dando tom envelhecido a uma obra que se quer inovadora.
Há questões de roteiro, também, como nos excessos folhetinescos que passam a dominar a trama quando os ex-soldados se encontram com uma ONG francesa de desarmamento de minas em plena selva vietnamita. As cenas de ação parecem às vezes exageradas quando não dispensáveis. Assim como a atuação de Delroy Lindo, elogiada por muitos críticos, flerta com o overacting. Em especial quando emula um alucinado Coronel Kurtz, personagem de Marlon Brando em Apocalypse Now. O retrato que faz dos vietnamitas soa bastante estereotipado, derrapada fatal numa obra antirracista.
É possível que essas falhas passem despercebidas tamanho o sentido de urgência que o filme ganha com este momento histórico, sob a palavra de ordem Black Lives Matter. Mas, apesar desse senso acidental de oportunidade, que o põe em ressonância com a vaga mundial antirracista, cabe registrar que Destacamento Blood não é exatamente o melhor Spike Lee. Longe disso.
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05 de junho de 2020 | 10h00
Do clássico O Nascimento de Uma Nação, de David W. Griffith, de 1915, ao recente Infiltrado na Klan, de Spike Lee, por mais de um século o racismo esteve presente nas telas como na própria vida norte-americana. Os dois filmes são emblemáticos porque abordam a sociedade secreta criada no Sul dos Estados Unidos, após a Guerra Civil, para tentar manter o ideal da supremacia branca. Neste momento em que o Caso George Floyd provoca protestos e as grandes cidades dos EUA ardem em manifestações como no auge da luta por direitos dos anos 1960, vale viajar um pouco na lembrança para recordar filmes que fizeram história com sua abordagem de temas como racismo, linchamento. A violência racial é endêmica na 'América', como afirma a ONU.
Os melhores filmes dos anos 2000
A morte da garota branca pelo 'negro' - um ator branco com o rosto pintado - impressiona até hoje pela perfeição da montagem e pela utilização da paisagem natural. O paradoxo de Griffith. Grão-senhor sulista, filho de um coronel arruinado, foi decisivo para o desenvolvimento do bê-á-bá da linguagem cinematográfica. Mas The Clansman, como se chamava originalmente o filme, é um monumento ao racismo. Griffith fez outros filmes que mostraram seu lado liberal e progressista (Hearts of the World, Intolerância), mas o sulista confederado falava mais alto quando o tema era a negritude.
O romance de Margaret Mitchell já é uma ode ao espírito sulista. O épico produzido por David O' Selznick mantém o tom. Ganhou todos aqueles Oscars em 1939. Mostras os carpetbaggers, escravos libertos que serviram de testas de ferro para os nortistas que compravam a troco de nada propriedades de aristocratas falidos. As personagens negras (Mammy, Prissy) são vistas com preconceito. E na estreia do filme, em Atlanta, as atrizes - nem Hattie McDaniel, que ganhou o Oscar de coadjuvante -. puderam sentar-se com o restante do elenco porque era proibido, pelas leis racistas da Georgia.
Talvez o maior filme antirracista produzido por Hollywood na fase pré-Spike Lee. Baseada no livro de William Faulkner, a história do velho negro ameaçado de execução sumária por um crime que não cometeu. O clima de festa, quando os brancos preparam o linchamento, é de arrepiar. Provada sua inocência, a comunidade branca terá de conviver com o fato de que o preconceito quase destruiu o homem bom, íntegro.
Da obra de Prosper Mérimée revista no musical de Oscar Hammerstein, Otto Preminger tirou um grande filme, com canto, dança e Dorothy Dandridge como a definitiva femme fatale. Esqueça Gilda. Nunca houve uma mulher como Carmem Jones. Dorothy, Harry Belafonte. Black is beautiful, mas o tom é de tragédia, um clássico.
Tony Curtis e Sidney Poitier fogem da cadeia ligados por uma corrente. O ódio mútuo cede espaço à compreensão e à solidariedade. Stanley Kramer era aquele diretor que os críticos amavam odiar nos anos 1950 e 1960, mas abordou grandes temas políticos. Abordou ou estragou? Há controvérsia, mas não há como negar a força dos atores.
Dorothy Dandridge e Otto Preminger, juntos e de novo. A ópera folk de Gershwin, a história de amor, sonho e ciúme. Sidney Poitier construiu uma persona de 'bonzinho', meio assexuado. Nunca foi tão viril como aqui. E Summertime é daqueles números que não se esquece.
O clássico dos clássicos do melodrama, pelo maior autor do gênero, Douglas Sirk. A estrela Lana Turner, sua doméstica negra (Juanita Moore) e a filha dela (Susan Kohner) que se faz passar por branca. Sexo, racismo e o grandioso funeral do desfecho. O adeus à velha Hollywood. O mundo e o cinema iriam mudar nos anos 1960.
O western de John Ford que marca o tributo do grande diretor aos soldados negros da Cavalaria norte-americana. O assassinato da garota branca no forte, o negro levado a julgamento. Jeffrey Hunter como o oficial que trabalha na defesa, Woody Strode, o acusado. Narrado em flash-back, um filme fora do eixo (adiante do seu tempo?) em 1960.
Sidney Poitier tornou-se o primeiro negro a ganhar o Oscar de melhor ator. Fez história, e foi nesse filme dirigido por Ralph Nelson. O operário desempregado (e negro) que ajuda o grupo de freiras (brancas) a construir a capela. Lilies of the Field, título original. Olhai os lírios do campo, Senhor. Ecumênico, bonito.
Stanley Kramer, de novo, e Sidney Poitier. Ele faz o namorado que a garota branca leva para conhecer seus pais. Spencer Tracy e Katharine Hepburn, no último de seus nove filmes juntos, são os pais liberais, e chiques, que tomam um susto. Os dois veteranos ganharam o Oscar, e foi o segundo para cada um dos dois.
Jules Dassin transpôs o romance de Liam O Flaherty, que já havia inspirado O Delator, de John Ford, nos anos 1930, para os protestos de negros nos 1960. 'I have a dream' e o assassinato de Martin Luther King. Protestos em Cleveland provocam a morte de um vigia branco. A polícia oferece recompensa e Tank Williams/Julian Mayfield termina por delatar o amigo. Por que? Dassin teve de se exilar nos anos 1950 por causa do macarthismo.Voltou para esse acerto de contas com a 'América'.
Martin Ritt fez o que talvez seja o Vidas Secas do cinema norte-americano. A vida de uma família negra, e pobre, durante a depressão econômica, vista através dos olhos do cachorro, que se chama Sounder, o mesmo título original do filme. Indicado para melhor filme, ator e atriz, Paul Winfield e Cicely Tyson, mas era o ano de O Poderoso Chefão. E Cabaret.
Spike Lee, a pizzaria no Brooklyn que só tem na parede retratos de personalidades ítalo-americanas. O calor insuportável que acirra os ânimos da população negra, que quer se ver representada, o confronto. Não foi nem indicado na categoria principal, mas segue sendo o melhor filme feito por um cineasta negro dos EUA. Concorreu a roteiro (Lee) e ator coadjuvante (Danny Aiello). Não levou nenhum.
Oscars de melhor filme, atriz (Jessica Tandy) e roteiro adaptado para a história da velha dama sulista e seu motorista negro. Foi o filme para o qual Spike Lee perdeu em 1989. Bruce Beresford dirige. E Morgan Freeman já vinha se destacando (Armação Perigosa, Tempo de Glória). Nos anos e décadas seguintes, adquiriu estatura. Interpretou presidiários, sábios, presidentes, até Deus. Grande ator.
A cinebiografia de Malcolm Little, que se tornou conhecido como Malcolm X. Sua transformação em Al Hajj Malik Al-Shabazz que criou a Organização para a Unidade Afro-americana e defendia o Nacionalismo Negro. Spike Lee dirige o imperial Denzel Washington, que foi indicado para melhor ator (e perdeu aquele Oscar para o Al Pacino de Perfume de Mulher).
Tudo a ver com a história de George Floyd. Baseado em outra história real, a do jovem negro Oscar Grant, morto em 2009 por um segurança de metrô em Oakland. Estreia do futuro diretor de Pantera Negra, Ryan Coogler, que declarou. “Em Oakland, se você é negro, não tem expectativa de chegar aos 30. Eu jurava que não chegaria, tal é a violência que nos é (como negros) imposta.” Michael B. Jordan virou astro no papel.
O Caso O.J. Simpson e o julgamento do ator acusado de matar a mulher e o amante dela. Oscar de melhor documentário de 2017, o longa de Ezra Edelman e Caroline Waterlow é sobre o processo e o julgamento que inocentaram O.J. Para a dupla, a culpa é da 'América'- racismo, sexo, celebridades, dinheiro. Todos os ingredientes para um novelão.
Jordan Peele virou o arauto do novo poder negro de Hollywood. Ganhou Oscar e tudo o mais. E embora seu filme deva muito a Esposas em Conflito, de Bryan Forbes, de 1975, tem também um quê de Adivinhe Quem Vem para Jantar? A história do jovem negro que vai conhecer os pais da namorada branca e ingressa num pesadelo tem muito a ver com o racismo instalado na cabeça das pessoas e que, de Griffith a Donald Trump, com seu discurso belicoso contra as manifestações atuais nos EUA, exige reflexão - e repúdio.
Spike Lee chegou lá e finalmente ganhou seu Oscar (de roteiro adaptado) graças ao apadrinhamento de Jordan Peele, que produziu o filme. John David Washington, filho de Denzel, faz policial negro que se infiltra na racista Ku Klux Klan. Como? A história é real e o relato integra elementos da estética dos blaxploitation movies dos anos 1970.
Ryan Coogler e o super-herói negro dos comics, interpretado por Chadwick Boseman. Sucesso de público e crítica, um filme rico em colorido e som, com o pé na cultura africana. Venceu, merecidamente, os Oscars de trilha, figurinos e direção de arte em 2019, no mesmo ano de Infiltrado na Klan.
Cannes divulgou na quarta-feira, 3, sua lista de filmes para a edição de 2020. Serão distribuídos em parcerias com diversos eventos internacionais de cinema no segundo semestre, quando se presume que a situação da covid-19 terá melhorado. Há esse filme brasileiro, e sobre racismo. João Paulo Miranda dirige Antônio Pitanga na história do operário negro que conhece o preconceito numa cidade fictícia de colonização austríaca no Sul do Brasil.
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