As várias vidas de Katsura

No palácio erguido no século 17, é possível ver de perto o ápice do refinamento estético japonês - e a transformação de uma paisagem

PUBLICIDADE

Por MARCO GIANNOTTI , KYOTO , JAPÃO , MARCO GIANNOTTI É PROFESSOR , DE PINTURA NA ECA-USP USP , E PROFESSOR VISITANTE DA , KYOTO UNIVERSITY OF FOREIGN , STUDIES DURANTE O PERÍODO e LETIVO DE 2011-2012
Atualização:

Kyoto é uma cidade fascinante justamente porque se esconde. O costume de fugir do dia a dia e encontrar refúgio na cerimônia do chá é milenar. Não se trata apenas de um encontro fortuito para uma conversa passageira; nestas reuniões, nobres e samurais deveriam abandonar suas espadas e encontrar um ambiente minuciosamente preparado para o deleite estético: utensílios de valor histórico cuidadosamente são escolhidos em aposentos destinados à contemplação da natureza.A espiritualidade japonesa se tece nesta relação com a natureza, seja mediante manifestações dos espíritos ou kamis do xintoísmo, seja na busca de uma comunhão budista entre indivíduo e universo. Para tanto, os monges muitas vezes buscavam, assim como os nobres, refugio nas montanhas.A vila Katsura, construída no começo do século 17, está situada em um lugar privilegiado para se admirar a lua, costume comum entre os nobres do período Edo. Aqui, pode se testemunhar o ápice do refinamento estético japonês. Os pavilhões são meticulosamente construídos no intuito de se estabelecer uma relação de epifania com as estações. As portas e fusumas (painéis) são modulados a fim de propiciar uma visão privilegiada para exterior. Tudo é feito basicamente com madeira, tatames, papel de arroz, casca de árvore (para o telhado) e um revestimento de gesso ou terra batida para as paredes. Seu aspecto moderno salta imediatamente aos olhos, principalmente se pensarmos que neste momento predominava o Barroco e o Rococó na Europa. A vila Katsura logo se tornou uma espécie de paradigma para todo o modernismo: Bruno Taut, Le Corbusier e Gropius, que chegou a visitar a vila em 1954, exaltaram sua elegância e austeridade. Seu principio de construção por módulos, espaços abertos com paredes móveis e amplas "janelas," de fato se tornou básico para a arquitetura modernista.Um lugar tão belo não requer pinturas e as existentes nos fusumas são utilizadas para pontuar o espaço. Se devemos celebrar a comunhão com a natureza, é preciso diminuir ao máximo os artifícios alegóricos. Não há espaço para a virtualidade da perspectiva renascentista, com sua concepção metafisica inerente. Afrescos. No Japão, a imagem aparecia como um elemento a mais para celebrar a passagem do tempo, estava e atrelada a diversos rituais como a cerimônia do chá, ao emaki - pintura em rolo -, que será colocado ocasionalmente para celebrar a estação da vez. Neste caso, pode ser tanto uma imagem ou um poema com bela caligrafia.Se compararmos com os célebres afrescos romanos da casa de Lívia, nos anos 30-20 a.C., podemos de imediato notar uma relação totalmente diversa da arquitetura com a imagem. Os afrescos, que resistiram à força do tempo, estão justamente nos recintos mais fechados, enclausurados, num espaço sem janelas. Se a relação com o mundo exterior é bloqueada, cabe ao pintor criar uma paisagem ideal, um espaço virtual, para o olhar. Justamente o contrário acontece em Katsura, onde arquitetura e natureza são continuamente moldados em perfeita harmonia, mesmo que isto signifique redesenhar a paisagem a cada instante.A presença de um arbusto situado ao final de uma viela é significativa, pois lá está justamente para impossibilitar uma visão completa da paisagem, que deve ser desvendada pouco a pouco. À medida em que caminha, o observador vislumbra paisagens sempre mutantes, pois a folhagem, carpas no lago, musgo, pedras se transformam a cada instante. Talvez por este motivo é que os japoneses dão tamanha importância para a ponte, que está situada sempre como elo entre duas geografias distintas. Não é à toa que Monet vai se inspirar nestas paisagens para combater o paradigma italiano da veduta ideal, que parte do princípio de que vemos sempre a mesma natureza a partir de um só golpe de vista.Se a vila Katsura de fato foi um paradigma para o modernismo, este, na sua versão comercial, especulativa, em muito contribuiu para aumentar o contraste urbano na cidade. Após sairmos da vila e nos depararmos de volta com a cidade, vemos com desgosto como Kyoto pode ser tão bela e tão feia ao mesmo tempo: anomalias arquitetônicas invadem o centro da cidade, seja na forma de conjuntos habitacionais revestidos de um azulejo cinzento, seja pelo "novo riquismo" que resultou em prédios horrendos na avenida Oike. Não temos a beleza mórbida de Veneza, que por ser tão bela por inteiro parece estar sob ameaça do mundo externo. Em Kyoto, a ameaça vem de dentro, corroída pela especulação - rios, parques, palácios, vilas e templos são verdadeiros oásis. Tanto o templo dourado, solar, como o templo prateado, com sua paisagem lunar, tem no cume de seus telhados uma fênix que viaja para sempre no tempo e no espaço, resistindo a incêndios e terremotos, bem como à recente especulação imobiliária.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.