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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|As sereias

Afogado em livros e contando com apoio da família de classe média, Glauco nunca pensou no momento posterior. Sua paixão era o conhecimento

Atualização:

Glauco fez um bom curso de Filosofia. Leu os clássicos, dominou inglês, francês e até, após muitos esforços, era capaz de explorar o texto do imperador Marco Aurélio em grego. Seu empenho no debate conceitual era bem recebido pelos professores. Era um bacharel e licenciado em Filosofia, com três letras mágicas no diploma: USP.

Obra 'Escola de Atenas', feita entre 1509 e 1511, por Rafael, com filósofos gregos Foto: Reprodução

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Afogado em livros e contando com apoio da família de classe média, ele nunca pensou no momento posterior. Sua paixão era o conhecimento. Como todos os seus colegas, ironizava autoajuda, coach e o tom dominante das frases que circulavam nas redes. Irritava-se com os recortes que se fazia, especialmente de Nietzsche, transformando o alemão em incentivador de carreiras: “Torna-te quem tu és”. 

Ele começou a dar aula e queria, realmente, ensinar a pensar. Elaborou provas simples. As respostas estavam, com frequência, no enunciado da questão. Mesmo assim, mais da metade da turma achava que “filosofar” era “dar a sua opinião” e tinham rendimento ruim. Como os alunos eram clientes antes de tudo, a escola concordou que o professor era complexo demais e não conseguia se comunicar com o grupo discente. Foi demitido no fim do primeiro semestre.

Sem a escola, por ironia do destino, conseguiu emprego na redação da mesma revista que ele atacara em sala de aula como exemplo de má divulgação. Envergonhava-se de estar nela. Tentava se consolar com exemplos de Voltaire simplificando coisas para Frederico ou Descartes para a rainha Cristina. A publicação era menos do que uma corte ilustrada da Europa moderna. A revista tinha de vender e o que agrada ao grande público é uma tabela simples com cinco pontos centrais na obra de Tomás de Aquino ou boxes com detalhes picantes da vida de Michel de Foucault. Menos de um ano após a formatura, nosso jovem estava escrevendo sobre a relação do francês com garotos de programa em saunas da Califórnia. 

Glauco tivera dificuldades como professor, todavia, curiosamente, estava prosperando como um “fofoqueiro” filosófico. Gostaria de assinar com um pseudônimo. Tinha medo de que o professor Franklin Leopoldo Silva lesse um daqueles textos. A revista acrescentou a foto dele em uma coluna do tipo: “Tudo o que você queria saber sobre os filósofos e tinha medo de perguntar”. A sífilis de Nietzsche passou a ter enorme importância. Marx e o filho ilegítimo com a empregada? Quem quer saber das ideias do Capital? Nada! Como era a criança e como a esposa reagiu era o interesse. Verdade que Engels sustentou a criança? Platão saía com outros homens? Detalhes da proverbial falta de higiene de Diógenes eram sucesso absoluto. Havia espaço para explicar um princípio como “a navalha de Ockham”, desde que os exemplos envolvessem alguma relação com o Big Brother. Anacronismo? Desvio? Falácias? Ninguém que comprava a revista ou acessava o site tinha inclinações para tais sutilezas. O sucesso de Glauco crescia. Era grande, igualmente, a dor do nosso jovem filósofo. 

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Houve novidades. Surgiram os cursos do YouTube. Nosso professor, agora com 26 anos, poderia falar para muita gente. Gravou uma aula sobre ética em Kant. Comparou com outras concepções da área e analisou um parágrafo do autor por meia hora. Mostrou o peso de cada palavra e da argumentação. Identificou interpretações divergentes sobre o trecho e, por fim, usou termos como hermenêutica, imperativo categórico, etc. Finalmente, parecia, tinha dado uma aula de Filosofia, ainda que de História da Filosofia, mas uma experiência que ele poderia ter tido na USP. Vaidoso, achou sua exposição sobre ética kantiana muito bem estruturada e original. Postou o vídeo e recebeu enormes elogios. As 14 pessoas que o viram disseram que era muito bom e que aguardavam novos vídeos. 

A escassez de público o abalou mais do que a demissão na primeira vez. Glauco habitava um limbo: era técnico demais para o grande público e raso demais para os acadêmicos que condenavam sua experiência na revista popular. E... havia contas, uma proximidade com a namorada que já indicava vida estável. As sereias do mundo imanente cantavam. Ele não poderia se amarrar ao mastro do navio como Ulisses. Teria de verificar o valor da passagem para chegar a Ítaca. 

Glauco andava sobre dois mundos, sem cidadania fixa. Refletiu e fez um vídeo sobre Schopenhauer com boas frases e imitando sotaque de alemão. Duração? Quinze minutos, com piadas da relação do filósofo com Hegel. Pediu ajuda a um amigo designer digital e encheu o vídeo de imagens, efeitos e de música. Resultado? Oito mil visualizações. O segundo vídeo do novo modelo, agora sobre Erasmo de Roterdã, saltou para 40 mil visualizações. Frases costuradas aqui e ali, uma tirada cômica, câmera ágil e, de repente, o site monetizado estava pagando mais do que a escola que o demitira anos antes. 

O sucesso era exponencial. Ele tinha descido do muro e aberto um delivery com as sereias do mercado. O vídeo sobre como cada filósofo encararia uma live chegou aos trending topics. Como você encerraria essa história? Haverá esperança? É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO  DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS,  AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO- ESPINHO’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal
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