
18 de maio de 2013 | 02h10
Esse conflito entre avançar e recuar é cultural: gestos e hábitos e silêncios entendidos como milenares, que pareciam indestrutíveis, são substituídos pela modernização acelerada do Japão nas primeiras décadas do século passado. Natsume Soseki (1867-1916), o pai da literatura moderna japonesa - e cujo divertidíssimo Eu Sou Um Gato está editado pela mesma casa editorial de Kafu -, incorpora em sua obra esse dilema: narrar o Japão de seu tempo, em brusca mudança, defendendo seus valores fundacionais, mas realizando esse movimento por meio de gêneros - romance, conto - francamente ocidentais, estrangeiros, invasores. É por esse motivo que ler Junichiro Tanizaki (1886-1965), Ryunosuke Akutagawa (1892-1927) e Yasunari Kawabata (1899-1972), todos filhos literários de Soseki, tem um frescor tão contemporâneo ao leitor de hoje: seus livros são desconfortáveis exercícios narrativos diante dos gêneros que praticam, e já surgem desconstruindo seus pilares. Mesmo as narrativas históricas que escreveram - o célebre conto Rashomom, de Akutagawa, e romances como Kyoto, de Kawabata, e A Vida Secreta do Senhor de Musashi, de Tanizaki -, possuem uma atitude narrativa despojada e jogam com o falso conflito entre realidade e ficção com opulência discreta.
O grande drama cultural, no entanto, é o terremoto de 1923, que reduziu Tóquio a escombros e cinzas. O que acontecia com velocidade no imaginário, na forma com que a sociedade vivia e se enxergava, encontrou nas ruínas um marco fundacional de modernização intrusivo: monumentos milenares devastados foram trocados por prédios modernos, bairros boêmios incendiados deram lugar a espaços residenciais, ruas e avenidas foram substituídas. A obra de Kafu está plantada nesse solo fértil: tanto em Histórias da Outra Margem quanto em Crônica da Estação das Chuvas, os narradores vivem na lacuna de terem tanto do que lhes importava, os valores, a cidade, extirpados do horizonte cultural em tão pouco tempo. Por isso a fascinação pelo marginal em Kafu: há na margem, no grupo excluído pela Tóquio moderna, uma qualidade de museu onde o narrador nostálgico pode reviver, e reativar, seus sentimentos tão abraçados a esses gestos algemados ao passado.
O que é brilhante nessa obra é a sutileza como o narrador opera isso, seja em suas andanças pelo bairro pobre e marginal, onde protagoniza sua trama de amor, como também ao recuperar um manuscrito de um romance escrito antes do Grande Terremoto, e que agora, retomado, se torna tanto visitação amorosa a um passado recente arruinado, quanto também um laboratório emocional em que seus dilemas do momento presente são esmiuçados, encenados, repensados. Tasadu Oe, o protagonista, ao continuar a escrita da narrativa O Desaparecimento, vai projetando no texto os acontecimentos do próprio mergulho nos bairros decadentes, criando diante do leitor um sofisticado jogo de reflexos e espectros no qual, conforme avança o belíssimo livro, as fronteiras entre passado e presente, e realidade e ficção, se tornam gestos suaves da outra margem da imaginação que nos observa.
* VINICIUS JATOBÁ É FICCIONISTA
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