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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|As perguntas finais

Há quem faça o bem e existem os que repassam mensagens hostis como meta de veneno diário

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Por Redação
Atualização:

Em 11 de abril de 1963, o papa João XXIII (desde 2014: São João XXIII) lançou a encíclica Paz na Terra (Pacem in Terris). Faltavam menos de dois meses para o “bom papa” sair deste mundo. Dois anos antes, o simpático ex-patriarca de Veneza tinha renovado e reafirmado a doutrina social da Igreja com o texto Mãe e Mestra (Mater et Magistra), documento que retomava e ampliava tudo o que os bispos de Roma tinham pensado desde Leão XIII.

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A marca do pensamento católico oficial era condenação tanto da exploração do trabalhador como das propostas socialistas. A Igreja, oficialmente, condenava a ambição avarenta de alguns que concentravam bens sem pensar na caridade e, igualmente, recriminava a luta violenta ou a força como instrumento de justiça social. Tem certo impacto ler os documentos eclesiásticos em época polarizada e de revitalização da Guerra Fria nos trópicos.

São João XXIII, na já citada Pacem in Terris, defende a liberdade dos imigrantes e diz, da cátedra de São Pedro: “Por ser alguém cidadão de um determinado país, não se lhe tolhe o direito de ser membro da família humana, ou cidadão da comunidade mundial, que consiste na união de todos os seres humanos entre si”. 

O documento do papa João cita como fundamento para tal ideia seu antecessor, o conservador Pio XII, que na mensagem radiofônica de 1952 lembrou o direito do imigrante e da necessidade de fornecer segurança jurídica a quem se desloca de um país para outro. Alguém acusaria o Venerável Pio XII de ser simpatizante das esquerdas? O item 107 da encíclica sobre a paz diz: “Aprovamos, pois, e louvamos publicamente, nesta oportunidade, todas aquelas iniciativas que, sob o impulso da solidariedade fraterna e da caridade cristã, se empenham em lenir a dor de quem se vê constrangido a arrancar-se de seu torrão natal em demanda de outras terras”.

Reler os trechos oficiais do papado de Leão XIII até o atual papa Francisco é um exercício interessante. Quase tudo está disponível no site vatican.va, em várias línguas. Na parte inferior do site, estão os textos fundamentais, o catecismo oficial e muitos outros documentos para pensar questões como justiça social, imigração e direitos de minorias. 

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Em virtude de uma pesquisa que estou realizando, reli quase todas as encíclicas sociais católicas. Imaginei se um papa como Pio XI ou Pio XII tivesse uma rede social e colocasse algumas frases sobre direitos humanos, direitos dos encarcerados ou o escândalo da miséria nas ruas de cidades ricas. Que reações causariam esses pontífices no atual panorama brasileiro? Imagino que alguns gritariam: “Tem pena de bandido na cadeia? Leva para a Basílica de São Pedro!”. “Vai para Cuba, Pio XII!” 

Talvez seja o mais dramático de tudo: a ideia da dignidade humana, presente nos evangelhos, defendida pelos filósofos e amparada por papas superconservadores como os citados por último hoje, para alguns, só pode ser defesa de algum partido de esquerda. A encíclica Pacem in Terris é dirigida aos prelados católicos e ao povo cristão, porém, de forma muito inovadora, a “todas as pessoas de boa vontade, a paz de todos os povos, na base da verdade, justiça, caridade e liberdade”. É um lindo endereçamento e ainda válido. Em muitos momentos, o texto papal sobre a paz cita pessoas abnegadas que lutam pela concórdia e pela solidariedade no mundo. Conheci várias aqui em São Paulo, de organizações de acolhimento a imigrantes a voluntários para serviços com moradores de rua. Talvez sejam pessoas que não passam horas por dia derramando ódio em redes sociais e expressando suas dores pelo teclado. Há quem faça o bem e existem os que repassam mensagens hostis como meta de veneno diário. 

Eu, que não sou religioso e não compartilho da crença em um Juízo Final, sempre penso nas perguntas do último julgador apresentadas em Mateus 25. Lá, segundo o testemunho que não é de esquerda ou de direita, que não é conservador ou revolucionário, o próprio Jesus afirma que somente serão avaliadas as pessoas por ações concretas ligadas à solidariedade humana. Será salvo quem se ocupou de presos e de doentes e não quem berrou o dia inteiro sua opinião. O Céu está reservado para os que pensaram nos outros, na caridade, na ação solidária. 

O Paraíso existe para consagrar a harmonia de quem passou por cima de seus limites e atendeu quem tinha menos. Essa é a doutrina social da Igreja e, acima de tudo, a palavra direta de Jesus ao descrever como todas as vaidades humanas cairão por terra no dia derradeiro. Para ser mais específico, só serão perguntadas suas ações sobre dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, dar roupa a quem tem necessidade, amparar doentes/encarcerados e atender estrangeiros. Só isso. Nada mais. Nenhuma posição teórica. Nenhum debate sobre imagens de santos, dízimo, socialismo ou Estado Mínimo. Só e exclusivamente a caridade fruto da compaixão. 

Na hora derradeira, no momento final, no dia em que todos tremerão, apenas os seis critérios enumerados um a um: fome/sede/roupa/doença/prisão/estrangeiros. Bem... estamos na Páscoa, você ainda não morreu e o Juízo Final ainda não começou. Boa semana. 

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