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As memórias de um "rato de hotel"

Por Agencia Estado
Atualização:

Exímio caçador de raridades, o advogado Plínio Doyle, morto no domingo aos 94 anos, formou ao longo da vida uma formidável biblioteca de 25 mil livros (hoje acervo da Casa de Rui Barbosa), graças principalmente à persistência - não se enganava, por exemplo, com capas feias e brochuras mal-acabadas em suas buscas a livrarias e sebos do Rio de Janeiro. Em uma dessas pesquisas, encontrou uma obra que, apesar de graficamente desestimulante, exibia um título curioso: Memórias de um Rato de Hotel, de um certo dr. Antônio, elegante ladrão de casaca que foi preso em 1911, quando narrou seus feitos a um jornalista. Motivado a descobrir o que seria um rato de hotel, Doyle folheou o livro e, emocionado, descobriu ter nas mãos uma obra assinada por um pseudônimo de João do Rio, um dos mais importantes cronistas do início do século. Foi esse exemplar, arrematado por uma bagatela por Doyle que a Dantes Editora usou como modelo para lançar o sexto volume da Coleção Babel, especializada em resgatar autores famosos em outra época e que agora mofam esquecidos - já foram publicados desde Théo-Filho (Praia de Ipanema) até Repórter X (Memórias de um Ex-Morfinômano). Doyle não apenas emprestou seu exemplar, editado em 1912, como também assinou uma nota prévia, que abre o volume da Dantes. Nele, descreve como descobriu: "Na capa, uma assinatura/rabisco que me pareceu ser de Francisco Prisco e logo a seguir uma página de papel diferente em que li, surpreso: ´O autor deste livro é João do Rio´, e a assinatura, então mais legível - Francisco Prisco, nome muito conhecido na cultura e na literatura brasileiras, pelas inúmeras bibliografias que organizou de escritores brasileiros, publicadas em revistas e jornais." A afirmação é ousada, pois o livro não consta da relação de obras completas de João do Rio, nem de sua volumosa biblioteca particular (atualmente no Real Gabinete Português de Leitura). Anna Paula Martins, bibliófila e comandante da Dantes, pediu então a avaliação de João Carlos Rodrigues, que realizou extensa pesquisa sobre João do Rio, em 1990, publicada como João do Rio, uma Biografia (Topbooks). Também surpreso com a descoberta, Rodrigues analisou o exemplar comprado por Doyle, já arquivado na Casa de Rui Barbosa. "Examinando o texto, percebi muitas afinidades com o estilo e o mundo ficcional de João do Rio", escreve o pesquisador, no posfácio. "Mas nenhuma pista concreta que pudesse corroborar a temerária anotação." Rodrigues ficou intrigado, porém, com as aparentes coincidências entre as personalidades do ladrão e do jornalista. "Os dois vestiam-se com apuro, tinham a conversa envolvente, eram típicos dândis da virada do século. Ambos usavam pseudônimos, talvez para esconder outras facetas de suas personalidades." Também é notória a predileção e o interesse de João do Rio pelo submundo e seus personagens. As semelhanças continuam nas datas - vasculhando as publicações do jornal A Gazeta, na seção de periódicos da Biblioteca Nacional, no Rio, Rodrigues encontrou o primeiro capítulo de Memórias de um Rato de Hotel, o Dr. Antônio Narra a Sua Vida, folhetim publicado a partir de 24 de dezembro de 1911, em 39 capítulos, que ocuparam edições de todo o mês de janeiro e alguns de fevereiro do ano seguinte. Mais importante periódico carioca da época, A Gazeta tivera justamente João do Rio como seu diretor a partir do segundo semestre de 1911. O cronista trabalhou ainda no vespertino A Notícia, que registrou, segundo Rodrigues, "uma das mais interessantes e menos conhecidas fases de sua carreira". Apesar do deteriorado estado da única coleção existente do jornal (a da Biblioteca Nacional), o pesquisador encontrou elementos que reforçam a afirmação de Francisco Prisco: na crônica O Representativo do Roubo Inteligente, publicada em agosto de 1911 e reproduzida na edição agora lançada, são encontrados três parágrafos que foram utilizados no primeiro capítulo do livro de memórias do dr. Antônio. Segundo Rodrigues, nos cinco meses em que teria se dedicado a escrever o livro, João do Rio publicou em A Notícia três crônicas curiosas, intituladas O Assassino Escreve-me, O Assassino Fala-me e O Assassino Visita-me. "Tratam de um criminoso perfeccionista que se aproxima do jornalista desaparecendo, contudo, para sempre ao vê-lo receber de um amigo delegado a permissão para visitar um preso na Casa de Detenção, precisamente onde estava confinado o dr. Antônio", observa Rodrigues. O dr. Antônio era um ladrão confesso, com diversas passagens pela polícia e muito conhecido pelas autoridades, que tinham dificuldade em pegá-lo em flagrante. Como andava sempre bem-vestido, hospedava-se em hotéis de relativo luxo sem despertar atenção. Trocava-os tão logo consumava o delito, utilizando assim nomes diversos - não havia a atual cédula de identidade na época. Estudava minuciosamente os hábitos dos outros hóspedes, observando sempre os momentos em que deixavam seus quartos para agir como um "rato de hotel". Apesar da elegância, era pouco provável que o dr. Antônio tivesse um lastro cultural, o que aumentam as possibilidades de intervenção de João do Rio nas memórias, principalmente nas citações eruditas de Mirbeau, Ponson du Terrail e Alexandre Dumas. "E se o escritor-jornalista influenciou, também foi influenciado, como parece mostrar a peça teatral em um ato Que Pena Ser só Ladrão, encenada em 1915, cujo protagonista é um elegante rato de hotel surpreendido por uma mundana ao roubar seus aposentos, e que defende com interessantes argumentos a ética de sua atividade", comenta Rodrigues. Memórias de um Rato de Hotel - de João do Rio, Dantes Editora, 292 páginas, R$ 18,00.

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