As iluminações de Tarkovski

Diário do cineasta russo (1932-1986) e o roteiro de sua última produção, 'O Sacrifício', abrem a coleção de textos do gênio que enfrentou a burocracia da URSS e era obcecado pela morte

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Por Antonio Gonçalves Filho
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A lista de realizações do cineasta russo Andrei Tarkovski (1932- 1986) seria com certeza mais longa se o câncer e o boicote do Estado soviético não tivessem interrompido a carreira do premiado diretor de O Sacrifício (1986). Ele teria, por exemplo, feito um filme sobre a vida de Dostoievski, adaptado seus livros O Idiota e Crime e Castigo, transformado Hamlet e, ainda dado sua versão de A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, José e Seus Irmãos, de Thomas Mann, A Peste, de Albert Camus, e O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, entre outros projetos não filmados, dos quais três roteiros inéditos serão lançados pela É Realizações. A editora acaba de firmar acordo com o Institut International Andrei Tarkovski, dirigido pelo filho do cineasta, que tem o mesmo nome do pai, para lançar, além desses inéditos, quase todos os roteiros filmados pelo cineasta - a exceção é Andrei Roublev, de 1966, já publicado pela Editora Martins/Martins Fontes - e mais o Diário que ele manteve entre 30 de abril de 1970 e 15 de dezembro de 1986, duas semanas antes de morrer.

O Diário e o roteiro de O Sacrifício, último filme do diretor - ambos ilustrados com fotos -, serão os primeiros livros da série dedicada a Tarkovski, que faria 80 anos em abril. O lançamento de ambos está previsto para outubro. Os outros roteiros foram agrupados em quatro volumes e devem sair em 2013. No primeiro estarão o do média-metragem de estreia do cineasta (O Violinista e o Rolo Compressor, 1960) e seu primeiro longa (A Infância de Ivan, 1962). O segundo volume vai trazer os roteiros de Solaris (1972) e O Espelho (1974). O terceiro reunirá Stalker (1979) e Nostalgia (1983). Finalmente, o quarto volume será dedicado aos roteiros não filmados: o faroeste Sardor, a ficção Le Vent Clair (baseado em Ariel, romance do russo Alexandre Beliaev sobre um garoto capaz de voar sem asas) e Hoffmanniana (sobre o imaginário do escritor e compositor romântico alemão E.T.A. Hoffmann, que, à beira da morte, vê o fantasma de Gluck e conversa com os personagens da ópera Don Giovanni, de Mozart).

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A lista de seus filmes irrealizados é extensa. Mais longa ainda é a lista de reclamações de Tarkovski, em seu Diário, contra os burocratas da extinta URSS. O cineasta os acusa das piores estratégias para impedir a produção de seus filmes, hoje considerados obras-primas pela crítica internacional. O Diário é um muro das lamentações contra o desprezo com que foi tratado pelos diretores das instituições oficiais soviéticas - seus filmes eram invariavelmente lançados na surdina, sem cartazes e em salas de pouca importância, apesar dos prêmios conquistados no estrangeiro. Além disso, Tarkovski vivia modestamente e dependeu da bondade dos amigos para morar na Itália e na França (na fase terminal, durante o tratamento quimioterápico), sendo ainda obrigado a suplicar a intervenção de presidentes (Mitterrand e até Reagan) para obter vistos de saída da URSS e trazer o filho Andrei e a sogra para o Ocidente.

Não surpreende que o cineasta mostrasse interesse pela vida de Hoffmann a ponto de escrever um roteiro sobre ele. Os dois tinham em comum uma história de exílio, brigas com autoridades, obsessão pela morte e falta de dinheiro crônica - o escritor alemão vivia pedindo empréstimos a amigos, passou fome e a filha morreu durante a ocupação de Berlim pelas tropas napoleônicas. No entanto, o roteiro do filme Hoffmanniana não trafega pelo mundo real do escritor e compositor, embora toque em dois aspectos importantes para entender o universo macabro do autor: seus delírios de alcoólatra e a agitada vida sexual que o tornou sifilítico, levando-o à morte aos 46 anos. 

Um personagem assim “lunático” como Hoffmann, criado num lar disfuncional, não poderia mesmo interessar ao Goskino (o comitê estatal que aprovava as produções de cinema entre 1963 e 1991, quando foi extinto com a URSS). Tarkovski amarga a decepção de uma carta recebida do comitê, de 1976, justificando a recusa de seu roteiro: ele não teria sido “bem-sucedido” no projeto. Má-fé e ausência de crítica andavam juntas no Goskino. 

Hoffmanniana não é um roteiro genial como o de Andrei Roublev, que Tarkovski assinou com Konchalovski, ou de Solaris, parceria com Friederich Gorenstein, mas é fascinante, não só por Hoffmann ser o epítome das contradições do romantismo alemão como por sintetizar o eterno conflito dos artistas com autoridades estatais, que ele e Tarkovski involuntariamente encarnaram. 

Sob a forma de collage, o cineasta relembra episódios da vida do escritor e localiza a ação em seu leito de morte, recorrendo à paráfrase hoffmanniana em sua fantasia sobre o mundo imaginário dos artistas. Nele, é possível conversar com personagens de óperas - como faz Hoffmann com Donna Anna, a filha do comendador seduzida em Don Giovanni - e até mesmo confundir Henriette Vogel, a amante suicida de Kleist, com a própria paixão extraconjugal, sua aluna Julia Mark, para concluir que é melhor ser feliz depois de morto do que infeliz nesta vida. Tarkovski busca num poema de Novalis a explicação para crença tão radical: “Para os amantes, a morte é uma noite de núpcias”.

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Tarkovski sonhou repetidas vezes que estava morto, contemplava seu cadáver e ressuscitava. Seguia nesse mundo onírico o princípio condutor da vida do pai, o poeta Arseni Tarkovski (são dele os poemas de O Espelho). Para Arseni, não havia distinção entre os vivos e os mortos - o que explica a interação entre ambos na ficção Solaris. Tanto que O Sacrifício deveria se chamar O Eterno Retorno, mas, um dia depois do início das filmagens (em 1983), ele já havia desistido do título por considerar que Nietzsche não servia ao propósito do filme. Segundo ele, O Sacrifício deveria mostrar a existência de um outro mundo, miraculoso, além deste, e não abolir - como fez Zaratustra, o profeta de Nietzsche - a doutrina dos dois princípios morais do bem e do mal. Tarkovski diz, em seu Diário, que a Criação é a certeza - ainda que uma certeza que admite os erros que a acompanham, porém nunca a mentira. A arte, assim, defende ele, não operaria por meio da verdade, “mas pela imagem da verdade”.

Já na primeira anotação do Diário, feita em 1970, ano em que nasceu seu filho Andrei, Tarkovski diz que o homem que não aspira à grandeza da alma é “menos que nada, qualquer coisa como um rato”. A religião, conclui, é a única porta aberta pela criatura para o Todo-Poderoso - Deus é definido por Tarkovski conforme a filosofia taoista, do chinês Lao-tsé, ou seja, como o insondável, o invisível, aquele que está além do entendimento humano. Ele tanto acreditava na religião, na arte e na filosofia como os três pilares de sustentação do mundo que o Comitê Central do Partido Comunista da URSS exigiu mudanças em Andrei Roublev, cujo roteiro, aliás, ele quase perdeu num táxi (por milagre, o motorista o reencontrou na rua e lhe devolveu o manuscrito pela janela do carro).

“Deus, como é difícil trabalhar com a Mosfilm”, escreve, em 1971, reclamando das intervenções da produtora estatal no filme sobre o célebre pintor de ícones do século 15 - as autoridades soviéticas certamente não gostaram de se ver retratadas como tártaros invadindo com seus cavalos uma catedral em Andrei Roublev. “Como a vida é triste, como invejo aqueles que podem trabalhar sem o controle do Estado”, escreveria dois anos depois, quando Solaris estreou sem muita divulgação em Moscou. No ano seguinte, 1974, foi a vez de Tarkovski interceder em nome do amigo cineasta Paradjanov (A Cor da Romã) para que o Comitê Central do PC da Ucrânia o libertasse da prisão e o deixasse filmar. Sem sucesso. O comitê respondeu que Paradjanov era um criminoso (acusado de roubar ícones). Sete anos depois, em 1981, o mesmo comitê proibiu Stalker para estudantes, alegando se tratar de um filme “pernicioso” para a juventude.

As últimas palavras do Diário de Tarkovski são para Hamlet. Ele, que dirigiu uma montagem heterodoxa da peça (nela, todos ressuscitavam no final), queria tanto filmar a obra de Shakespeare como a vida de Santo Antonio - o cineasta se identificava com ele por não encontrar a harmonia dentro de si, mas, ainda assim, ouvir a beleza nascendo do universo a cada aurora, a cada raio de luz do outono. Os grandes do cinema são, segundo Tarkovski, como esses santos, capazes de dizer não ao mundo. Mas são poucos aqueles que não têm medo, o pior inimigo de um cineasta. Seu diretor preferido, o francês Robert Bresson, segundo o Diário, era um deles.

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