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As heranças do Quixote

Em La Gran Novela Latinoamericana, o mexicano Carlos Fuentes aponta Memórias Póstumas de Brás Cubas como a única narrativa do gênero em sua época, no continente, a ser considerada, graças ao parentesco com Cervantes

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Por Ubiratan Brasil
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O escritor mexicano Carlos Fuentes tem uma receita pessoal para manter o intelecto equilibrado: ler, ao menos uma vez por ano, o clássico D. Quixote, de Miguel de Cervantes. "Ele abriu todos os caminhos do romance moderno e sua obra mantém um frescor intacto: poucos livros, como D. Quixote, conseguem a proeza de mostrar que a primeira leitura é insuficiente para o leitor absorver toda sua riqueza", disse Fuentes ao Estado na quarta-feira, em conversa por telefone de Londres, onde vive. Ele acabara de voltar de um périplo europeu de lançamento de La Gran Novela Latinoamericana, ensaio editado pela Alfaguara espanhola em que oferece uma visão pessoal da história do romance escrito na América Latina.A tradução do livro já está assegurada pela Rocco, que edita sua obra no Brasil, embora ainda sem data definida de lançamento. No ensaio, Fuentes exalta a importância de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, como o melhor romance latino do século 19. E ignora o chileno Roberto Bolaño, escritor cuja obra Fuentes confessa não ter lido ainda.Fuentes é autor de um conjunto de livros marcado pela inquietação. Como o recente Adão no Éden, espécie de reportagem romanceada, em que ele põe o dedo na ferida mexicana ao descrever um país assolado pela corrupção, pelo crime e por uma profunda desigualdade econômica. Próximo dos 83 anos (completa em 11 de novembro), o autor - que nasceu no Panamá, onde seu pai, diplomata mexicano, servia na ocasião - é um crítico incansável. "O México não enfrentaria um problema tão grave de narcotráfico se não houvesse demanda nos Estados Unidos, nossos vizinhos ao Norte", afirma ele, que adota o humor em Adão no Éden, além de flertar com o surrealismo e o realismo mágico, para acompanhar a ascensão de Adão Gorozpe, homem que, nascido pobre, transforma-se em figura de destaque depois de um casamento por interesse.Narrado em primeira pessoa e com diversos recursos estilísticos (como saltos temporais e constante intromissão na narrativa de notícias de jornal), o livro se encaixa no segmento denunciador da obra de Fuentes, como a ficção futurista A Cadeira da Águia, que se passa em 2020, quando a Presidência dos Estados Unidos é assumida pela ex-secretária de Estado do governo George W. Bush, Condoleezza Rice. Incansável, prepara novo livro (Frederico en Su Balcón) para 2012 e também uma visita ao Rio de Janeiro, em novembro, quando vai participar do Fórum da América.Como surgiu a ideia de escrever sobre a história do romance latino-americano?Fui convidado por meu editor americano para produzir um ensaio sobre minha leitura de obras latinas. Algo pessoal, sem finalidade acadêmica. Comecei com os descobridores da América, que foram os primeiros escritores a tratar da nosso continente. Em Crónicas del Nuevo Mundo, de David Posse, transbordam descrições de maravilhas como tartarugas e seus mil ovos ou pérolas negras. É o primeiro contato que a Europa, ansiosa por fantasia, tem do Novo Mundo. Mas se a narrativa das Américas começa com a imaginação mítica, Bernal Diaz del Castillo logo foca sua escrita na conquista épica. Assim, a maravilha da descoberta é superada pelo clamor da conquista. Uma vitória cheia de dúvidas, porque Bernal descreve a destruição do mundo que ama por aquele a que obedece. Seu livro é a memória da juventude de um homem maduro, esquecido e cego. O mito é já épico.E qual a importância de Cervantes nesse contexto?Ele abriu o caminho para todos os novelistas modernos. Afinal, foi o primeiro a desdobrar o gênero porque, em sua narrativa cavaleiresca, aparecem formatos épicos, picarescos, de amor, de aventuras e, principalmente, o romance dentro do romance, uma vez que D. Quixote se imagina personagem de um livro sobre suas aventuras, o que é totalmente metalinguístico. Uma confusão de gêneros que vai influenciar e consagrar o argentino Domingo Faustino Sarmiento, cujo clássico Facundo: Civilização ou Barbárie, de 1846, é, aliás, o livro definitivo do século 19 latino-americano. Sobre esse século, aliás, há um detalhe em seu ensaio que interessa muito aos brasileiros: por que considera Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, como o único romance que se salva?Porque manteve um parentesco literário com Cervantes. Naquela época, a literatura hispana foi contaminada por ideias de independência, ou seja, de influência francesa. O mexicano Joaquín Fernández de Lizardi inaugura essa fase com El Periquillo Sarniento, de 1816, abrindo as portas para diversos escritores profundamente influenciados pelo romantismo, realismo e, por fim, pelo naturalismo europeus. Machado, por outro lado, com Brás Cubas, recupera a tradição cervantina ao mesclar gêneros, ou seja, une o humor, o herói comum, as ilusões e o engano, assim como a crítica do livro dentro do livro e o questionamento de sua autoria. E o grande herdeiro de Machado de Assis é Jorge Luis Borges, que consegue dar um salto ainda maior.Como assim?Há trechos na obra de Machado que precedem O Aleph, de Borges. Esse, por sua vez, é um dos escritores que promovem a grande revolução na literatura latino-americana da época, que estava estancada no realismo e no naturalismo - o pampa ou a selva tinham de ser descritos em seus mínimos detalhes. Borges, por outro lado, criou um mundo fantástico, que fundia tudo, real e irreal. O universo aspira a totalidade, mas somente a exceção é capaz de explicá-lo. Nesse sentido, O Aleph reúne todos os espaços possíveis. O conto Funes, o Memorioso é a união de todas as memórias e a História Universal da Infâmia abraça todas as histórias. O que acontece é que esse gigantismo todo é ameaçado por um amor pessoal (Beatriz Viterbo, no caso de O Aleph), por uma diminuição do absoluto (Funes) e pela particularidade excêntrica (Infâmia). Borges, ainda, reescreve D. Quixote no conto Pierre Menard: linha por linha, palavra por palavra, com uma intenção totalmente distinta. Enfim, há uma apologia à imaginação literária na escrita de Borges, algo que abriu brechas para outros, como Alejo Carpentier e Lezama Lima, que vão abrir o caminho mundial para o boom latino-americano que viria em seguida.E como é possível encaixar, nessa sequência, a literatura de Juan Rulfo e Octavio Paz?Paz foi um poeta e ensaísta que influenciou muito seus pares, enquanto Rulfo, apesar da produção reduzida, figura como um dos maiores nomes da literatura mundial - Pedro Páramo é um romance de tirar o fôlego graças à sua beleza literária. Em meu ensaio, afirmo que as literaturas campesina e revolucionária mexicanas culminam com dois autores, Agustín Yáñez e Rulfo. Eles encerram um ciclo com obras que aparentemente tratam de um momento histórico (revolução mexicana) mas, na verdade, transcendem a originalidade do estilo, da estrutura e da intenção. Al Filo del Agua e Pedro Páramo encerram um capítulo temático e abrem outro, o da escrita como busca do desconhecido. Dessa forma, a história narrada sobre o século 19 se converte na história sobre o que não foi contado: a paixão de Pedro Páramo por Susana San Juan, a imensa solidão dos povos de Yáñez, a dúvida acerca de um tema fundamental: quem é meu pai? Quem são minhas mães?O que dizer sobre o realismo mágico?Muitos acreditam que se trata de um movimento recente, o que não é verdade. Cristóvão Colombo, quando descreveu as primeiras imagens da América recém-descoberta, já afirmava ter visto as sereias do Caribe em 1495, o que lhe causou uma certa decepção, pois não pareciam tão belas como eram descritas. Claro que as características marcantes do realismo mágico foram apresentadas bem depois, por Borges em grande escala e também por Carpentier, García Márquez e outros.Há uma parcela de autores mais jovens que criticam o realismo mágico porque se tornou um estilo aprisionador, ou seja, quem não escrevesse nesse estilo, não era reconhecido.Isso é bobagem dita por pretensos escritores que não sabem fazer nada mais que imitar (e mal) o estilo de García Márquez. Felizmente, na nova geração, há nomes que se destacam, como o colombiano Santiago Gamboa e os mexicanos da geração do Crack, como Jorge Volpi e Ignacio Padilla, que têm uma obra consolidada e uma carreira encaminhada.Por falar nisso, o senhor não faz referência, em seu ensaio, ao chileno Roberto Bolaño, um dos latinos mais elogiados na literatura contemporânea. Por quê?Simplesmente, porque ainda não li nenhum de seus livros. Fico incomodado quando algum autor se transforma em unanimidade, especialmente da crítica. Não quero dizer que sua obra não seja boa, pois, como já disse, não conheço. Vou esperar a poeira baixar para então avaliar criteriosamente. E, em meu ensaio, não traço a história formal da literatura latina, apenas elenco os livros que li e que contribuíram, na minha opinião, para o desenvolvimento da arte. Sobre Adão no Éden, o que o motivou a escrever essa história?Foi minha preocupação com o grande flagelo provocado pelo tráfico de drogas no México. Adotei uma escrita jornalística para conferir mais realismo à história desse homem, empresário poderoso, que, ao decidir combater o poder dos traficantes, torna-se mais violento que eles. Esse é um problema crônico de meu país que nenhum presidente consegue eliminar. A origem, no entanto, está nos Estados Unidos: se não houvesse demanda no vizinho do Norte, não haveria oferta mexicana. Infelizmente, tendo a acreditar que nem Barack Obama, que é um político bem intencionado, se atreverá a combater a droga nos Estados Unidos.O livro se parece, em muitos momentos, com uma história de humor negro.Foi justamente essa a minha intenção. Adão Gorozpe, o personagem principal, é uma figura pantagruélica e, ao escrever, eu me lembrei dos grandes clássicos como Rabelais, Sterne e, claro, Cervantes, que sabiam como metamorfosear os personagens à medida que a trama avança.E o senhor está trabalhando agora em uma nova obra?Sim, estou finalizando um romance que vai se chamar Frederico en Su Balcón. Deve ser publicado no ano que vem, mas não posso adiantar nada até porque, graças aos mistérios da criação, tampouco sei como vai terminar.LA GRAN NOVELA LATINOAMERICANAAutor: Carlos FuentesEditora: Alfaguara (Espanha)(400 págs., R$ 58,60)

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