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As duas faces do Chile

Dois livros de José Donoso, 'O Obsceno Pássaro da Noite' e 'O Lugar Sem Limites', e um de Bolaño, 'As Agruras do Verdadeiro Tira', revelam a distância que separa duas gerações de chilenos

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Por Ubiratan Brasil
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O cubano Guillermo Cabrera Infante notou, certa vez, que os escritores chilenos revelam uma qualidade comum, mesmo com personalidades tão distintas: são pessoas calmas e reflexivas, com um espírito de geometria assentado na literatura. Ele se referia basicamente a José Donoso (1924-1996), autor essencial da letra latino-americana cuja obra não era publicada no Brasil desde os anos 1980, fato agora reparado por duas editoras.Mas Cabrera Infante também poderia pensar em outro chileno, Roberto Bolaño (1953-2003), de uma geração posterior, fenomenal justamente por ter dado um enorme passo de qualidade e inventividade na escrita latina. Juntos, Donoso e Bolaño cobrem um longo período de atividade ficcional do continente, essencialmente modificada tanto pelo êxito do realismo fantástico como pela violenta ingerência da ditadura de Augusto Pinochet. E ambos conseguiram tomar rumos bem distintos dos demais.Donoso sempre figurou no seleto grupo de estrelas chilenas que alcançaram sucesso mundial: além dele, Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Isabel Allende e Manuel Rosas, os dois primeiros, aliás, premiados com o Nobel (Bolaño foi incluído na lista nos anos 2000). Artista do trapézio volante que se move entre o realismo imaginário e a arte da magia de criar personagens, climas e seres vivos, como bem observou Cabrera Infante, Donoso deixo ao menos uma obra-prima, O Obsceno Pássaro da Noite, publicado em 1970 e que a editora Benvirá está lançando com nova tradução, de Heloisa Jahn, também responsável pela versão de outra obra do chileno, O Lugar Sem Limites, de 1965, que a Cosac Naify promete para o dia 10.Em O Obsceno Pássaro da Noite, o argumento se estrutura em uma base quase irreal. O romance acompanha a trajetória de Humberto, rapaz humilde que, pelo próprio esforço, consegue emprego como secretário particular de um aristocrata que busca esconder o filho disforme. Envolvido com a mulher do patrão, Humberto fica atormentado e muda radicalmente sua vida, transformando-se em Mudinho, criado de um arruinado asilo de velhas. Mas, quando pensa ter rompido com aquele universo que o sufocava, descobre que o local pertence à família da qual havia se separado. Eis a chave para Donoso conduzir o leitor ao mito da metamorfose, uma vez que o narrador é obrigado a transformar sua personalidade e a assumir destinos opostos. Com O Obsceno, o escritor questiona a necessidade de se manter a ordem da realidade, uma vez que a demência e a fantasia se misturam e se sobrepõem à lucidez. Produtor de sonhos que se transformam em pesadelos, Donoso oferece ao leitor um romance que é a pura expressão da ambiguidade.Na verdade, Donoso revela sua maestria ao explorar emoções retorcidas - em boa parte de seus livros, os personagens masculinos mantêm uma complicada relação sentimental com as mulheres e muitos protagonistas se encontram paralisados diante da dúvida, inveja e insegurança. Mais que trama, a escrita revela-se peça fundamental para executar essas transformações, pois transforma o grotesco em algo palatável e até mesmo o travestismo desponta como um disfarce mais verdadeiro que os atributos reais para enfrentar a vida. O exemplo mais notável está em O Lugar Sem Limites, pequeno romance que consolidou sua imagem internacional, levado ao cinema por Arturo Ripstein em 1977.A novela é centrada no travesti Manuela, proprietário de um prostíbulo em um povoado próximo à cidade de Talca, fonte de sobrevivência também para sua filha, Japonesita. Manuela teme a volta de Pancho Vega, brutamontes que, no ano anterior, a espancou quando estava bêbado. A ansiedade do travesti domina toda a trama, notadamente infeliz. "Seus personagens, seu ambiente, seu clima mais raro tecem uma teia sombria, deletéria, em que aranhas são suas moscas e a vítima é por sua vez a vitimada", observa Cabrera Infante, que considera esse seu romance o mais rico em sugestões.Aclamado (Harold Bloom o incluiu em seu cânone dos melhores do século 20), Donoso, no entanto, não desperta unanimidade - entre tantos aplausos, é impossível ignorar a crítica de Roberto Bolaño. Em 1999, quando trocou sua participação na Feira de Guadalajara pela publicação de um artigo no suplemento Hoja por Hoja, distribuído no evento, Bolaño foi implacável: "O legado de Donoso é um quarto escuro", afirmava. "Dizer que ele figura entre os melhores romancistas de língua espanhola deste século é um exagero. O Chile não é um país de novelistas. Há quatro, talvez cinco grandes poetas chilenos e nenhum ficcionista pode resistir a uma breve comparação com eles."Para Bolaño, Donoso escreveu três bons livros: em primeiro, O Lugar Sem Limites, por tratar do desespero e da precisão. O seguinte seria O Obsceno, "trabalho ambicioso e irregular" e, por último, O Jardim do Lado, analisado como uma espécie de testamento. Graças a seu porte literário, Bolaño conseguiu colocar a obra de Donoso em nova revisão.Isso porque, apesar da morte prematura, ele se consolidou como um dos melhores autores latinos da recente safra. Em vida, publicou dez romances e duas coletâneas de contos, entre eles, pequenas obras-primas como Os Detetives Selvagens. Deixou também livros inéditos, editados ao longo dos últimos anos, como 2666 e As Agruras do Verdadeiro Tira, que a Companhia das Letras (sua editora no Brasil) lança dia 29.Uma vez mais, Bolaño passeia por vários estilos para narrar as dificuldades de um professor de literatura latino-americana, Amalfitano (que esteve presente também em 2666), que, aos 50 anos, é obrigado a se afastar da Universidade de Barcelona quando se descobre seu relacionamento com um aluno, um poeta marginal chamado Padilla. A única faculdade que o aceita se localiza na violenta cidade de Santa Teresa, no México. Lá, Amalfitano reflete sobre sua homossexualidade tardia, ao mesmo tempo em que se relaciona com outro homem, o falsificador de arte Castillo.Reconstituído a partir de arquivos deixados no computador do autor, além de páginas datilografadas, As Agruras do Verdadeiro Tira traz detalhes que distinguem a ficção de Bolaño como pertinentes reflexões sobre a América Latina e a ambiguidade moral que muitas vezes envolve a literatura.O homossexualismo também marcou a trajetória de José Donoso, ainda que de forma tortuosa - em 2010, sua filha adotiva Pilar Donoso publicou Correr el Tupido Velo (Tomando o Véu, em tradução livre), livro com extratos do diário pessoal do escritor, que tanto revelam sua carpintaria literária como também acentuam a dor por não poder tornar público seu bissexualismo.

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