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"As Coisas Simples da Vida", em DVD

Optando por tomadas longas e poucos cortes, filmando muitas vezes por trás de vidros, Yang traça um delicado painel da existência humana

Por Agencia Estado
Atualização:

Há de tudo em As Coisas Simples da Vida, o filme do cineasta de Taiwan Edward Yang que está chegando às locadoras, num lançamento simultâneo em DVD e vídeo da Europa. Um casamento, um nascimento, uma tentativa de suicídio, um crime e um funeral. Por aí se vê que o título é um tanto redutor, embora esclareça o que não deixa de ser a intenção desse autor pouco conhecido no Brasil (mesmo pelo público da Mostra Internacional de Cinema São Paulo). Convencido de que a crise existencial do homem moderno decorre da sua consciência de que perdeu alguma coisa essencial, Yang propõe um retorno à simplicidade. Vá ao dicionário. Lá você encontra simplicidade, substantivo feminino: qualidade do que é simples, que não apresenta dificuldade ou obstáculo. E o dicionário contempla até definições que talvez não sejam muito lisonjeiras: simplicidade é também ingenuidade. Não é nesse conceito que Edward Yang defende o retorno às coisas simples da vida. Sua simplicidade, acima de tudo, é aquilo que já foi definido como "um estado de espírito seletivo", capaz de identificar o que é realmente importante na vida das pessoas. Na vida e também no cinema, já que Yang fez o filme para expressar sua convicção de que o cinema pode ser uma forma de manifestação artística tão importante quanto a música, a pintura, o teatro, a literatura. Vendo o filme dele você pode até acreditar. A dúvida se instala quando você pensa no cinemão de Hollywood, que domina maciçamente os mercados de todo o mundo (o brasileiro nem se fala). Claro que Hollywood produz bons filmes e nenhum é melhor atualmente, do que O Senhor dos Anéis. Mas, para cada filme desses, há centenas de nulidades que são como o fósforo: deflagrado, dizia Guimarães Rosa, ele perde o uso. Esses filmes também. São para ser consumidos sem o menor senso crítico. Yang é um grande artista, mas não deixa de haver certa idealização na sua proposta de cinema. Um personagem diz, lá pelas tantas, que vivemos, no cinema, três vezes: temos duas vidas a mais. Com isso, o diretor quer dizer que o espectador tem a sua vida, mas também pode, graças ao mecanismo de identificação projetiva próprio do cinema, compartilhar, como suas, outras experiências. Yang não acredita no cinema como substituto da vida, como era para a Cecília de A Rosa Púrpura do Cairo, uma obra-prima (pós-moderna) de Woody Allen. Acredita nele como arte. E, se é arte, só pode ser um elemento enriquecedor (e iluminador) da experiência humana. Conceito - Partindo dessa idéia fundamental, que proporciona o conceito de As Coisas Simples da Vida, ele conta a história de uma família de classe média de Taipei. Tudo gira em torno da família e sua mutiplicidade de personagens, que possuem diferentes idades. Por meio dessa visão abrangente, ele toca em temas como infância, amor, casamento, solidão, velhice e morte. O patriarca da família Jian é sócio de uma empresa de hardwares para computadores. Já está no futuro, portanto, mas é desestabilizado por uma ameaça de falência e pelo reencontro com um amor da juventude, que o confronta com a sua insatisfação. Esse reencontro ocorre na ausência de sua mulher, que partiu para um retiro espiritual após o derrame que prendeu sua velha mãe ao leito. Não são problemas isolados, esses do pai e da mãe. A filha mais velha apaixona-se pelo namorado da amiga. O cunhado do patriarca Jian, irmão de sua mulher, casou-se por obrigação e não consegue esquecer a antiga namorada. E há o personagem cuja visão filtra as experiências de toda a família: o caçula Yang-Yang, que vive arrumando encrencas na escola e em casa, onde passa horas na banheira, entretido com seus brinquedos ou então fotografando mosquitos. Yang-Yang é, obviamente, o alter ego do diretor, mas isso não significa que a história de As Coisas Simples da Vida seja autobiográfica. É mais uma questão de conceito. O artista se identifica com o garoto porque ele, na sua inocência, faz as perguntas que incomodam porque não possuem respostas. É possível conhecer a verdade ou temos de contentar-nos com apenas parte dela? É em torno disso que se desenrolam os dramas individuais. Um risco, já que o diretor divide a atenção entre vários personagens que poderiam render diferentes filmes, seria dispersar o foco e não chegar a lugar nenhum, apenas propondo vinhetas interessantes, pela humanidade ou pela linguagem. Optando por tomadas longas e poucos cortes, filmando muitas vezes por trás de vidros, Yang traça um delicado painel da existência humana. Mas, atenção, delicado, no caso, não quer dizer reducionista ou redutor. Quando se diz que As Coisas Simples da Vida é longo, não é só porque tem três horas de duração. É pela experiência de arte e vida que encerra. Filmes como esse não costumam fazer muito sucesso nas locadoras. O público prefere narrativas de ação, comédias. Ponha um pouco de reflexão no seu vídeo no começo do ano. Dê-se o prazer de (re)descobrir o cinema pelo olhar de Yang-Yang, isso é, de Edward Yang. Serviço - As Coisas Simples da Vida, de Edward Yang. Lançamento Europa, em vídeo e DVD 166 min. R$ 35,80.

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