As barreiras do som no século 20

Musicólogo parte de Debussy para repensar criação musical

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Por JOÃO MARCOS COELHO
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As histórias da música do século 20 começam quase todas do mesmo jeito. O austríaco Arnold Schoenberg (Pierrot Lunaire, 1912) e o russo Igor Stravinski (Sagração da Primavera, 1913) nos colocaram na contemporaneidade. O francês Claude Debussy costuma receber só pinceladas rápidas, em geral nas introduções. Didier Guigue, francês abrasileirado, há 29 anos professor no Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, escolhe, em seu Estética das Sonoridades, partir de Debussy e o coloca como o autor de uma revolução possivelmente ainda mais decisiva do que as citadas (principalmente para as três últimas décadas; veja-se o espectralismo francês), pregando o som como unidade central da criação musical, e não mais o tom. De fato, ao contrário de séculos anteriores, nos últimos 100 anos os compositores guiaram-se basicamente pela exploração das sonoridades, a partir da descoberta do timbre e posterior análise espectral dos sons como eixo estrutural decisivo da criação contemporânea.Neste sentido, não deixa de ser curioso que, para estudar o século 20, marcado pela superação da tonalidade, serialismo e música eletroacústica, Guigue tenha optado pelo piano de Debussy. Logo o piano, que fora o rei dos instrumentos no século 19 e surge em sua produção renegando suas origens percussivas (ele repetia que "é preciso esquecer que o piano tem martelos"). Os dois prelúdios que Didier analisa no livro, por exemplo, estão entre os que o próprio compositor preferia tocar em pianos de armário ou nos de cauda com tampa fechada, argumentando que "é necessário afogar os sons". Em suma, Debussy fez do instrumento o veículo preferencial de sua genial exploração das ressonâncias, desrespeitando a separação som/ruído. Daí o acerto da dupla escolha de Didier Guigue, que parte de Debussy e seu piano originalíssimo para alcançar a produção efetivamente contemporânea, como ele mesmo conta ao Estado: "A escolha do piano é, em parte, devida ao fato de que para aprofundar um assunto é necessário limitar o campo. A ‘domação’ do ‘ruído’ é um passo fundamental no período, e de certa forma Debussy também contribui, quando retira dos acordes o seu papel de sustentação harmônica. No livro, abordo Crumb e Lachenmann, por exemplo, dois compositores que absorveram de forma consistente o ruído em obras para piano".Por outro lado, em seu método de análise, Guigue utiliza vários conceitos da música espectral, movimento nascido na França nos anos 60 em torno do Ensemble Itinéraire e dos compositores Gérard Grisey, Tristan Murail e Hugues Dufourt que de certo modo constitui um corolário da estética da sonoridade debussysta de um século atrás. O livro concentra-se fundamentalmente nas obras para piano deste arco histórico. Seu roteiro parte do prelúdios Feux d’Artifice e Ce qu’a Vu le Vent d’Ouest de Debussy, passa pelo eixo Boulez-Messiaen, revisita a Klavierstücke 11 de Stockhausen e a Sequenza IV de Luciano Berio, para chegar ao alemão Helmut Lachenmann e ao norte-americano George Crumb (Boulez e os dois últimos vivos e atuantes). A inesperada ausência de Györg Ligeti, autor dos importantes Estudos para Piano, é justificada porque o húngaro prioriza "antes o ritmo, a polimetria e a melodia, o toque e o prazer táctil de tocar, do que o timbre em si".Assim, Didier constrói um arco histórico das músicas do século 20 teleologicamente guiado pela perspectiva espectral. No entanto, ele não considera a música espectral hegemônica na multifacetada cena contemporânea. Mas reconhece: "Estamos diante de um movimento que, de fato, cristaliza a tendência inaugurada por Debussy, que nenhum compositor pós-anos 80 pode ignorar".Rigoroso no manejo dos conceitos de análise e inteligente na escolha do roteiro histórico de peças e compositores examinados, Guigue oferece ao leitor brasileiro o primeiro livro que conta a história da sonoridade no século 20. A floresta de notas de rodapé, 76 só nas primeiras 18 páginas, e o jargão técnico típico das teses universitárias, porém, afugentam leitores médios. Pelo interesse do tema, Estética das Sonoridades merece uma versão menos acadêmica, ao alcance de públicos mais amplos.JOÃO MARCOS COELHO É CRÍTICO MUSICAL, AUTOR DE NO CALOR DA HORA (ALGOL)ESTÉTICA DAS SONORIDADESAutor: Didier GuigueEditora: Perspectiva(424 págs., R$ 68)

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