Artesão da memória

Promovido pelo Itaú Cultural, ciclo Presença de Jorge Andrade traz títulos clássicos e inéditos do dramaturgo paulista que se valeu das reminiscências familiares e sociais para criar sua obra

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Por Maria Eugenia de Menezes
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A memória não é território apenas da verdade, mas também da invenção. Rememorado, o passado não emerge nunca em seu estado de pureza. As lembranças sobrepostas, corrompem-no. Cada tentativa de retroceder no tempo exige também uma parcela de imaginação. Mescladas à ficção, as reminiscências serviram de inspiração a Marcel Proust - e ao seu monumental Em Busca do Tempo Perdido -, a Pedro Nava - maior memorialista brasileiro -, a Jorge Andrade - que transformou o vivido em matéria essencial para o seu teatro. Considerado o mais paulista entre os nossos autores, Andrade (1922-1984) forjou seus dramas a partir do mundo que trazia dentro de si. Impregnou tudo com as experiências pessoais e familiares. Reconstruiu, qual arqueólogo, as paisagens, os objetos, as vozes que o formaram. "É um escritor muito coerente, que resgatou a história da sua família e da classe dos cafeicultores", comenta Beth Azevedo, professora e estudiosa da USP, que assina a curadoria do ciclo Presença de Jorge Andrade. Promovida pelo Itaú Cultural, a programação, que ocorre de sexta-feira a domingo, discute a importância da memória na obra do dramaturgo. Mas quer ir além. "Esse traço do resgate familiar é o mais lembrado quando se trata de Jorge Andrade. O que não quer dizer que ele se prenda ao passado", observa a curadora, que também incluiu no evento textos de conotação política do autor e suas experiências com teledramaturgia. "Conforme sua obra evolui, ele amplia o quadro temático. Discute fenômenos como o messianismo. Estuda sempre muito antes de tratar de um tema. Mas filtra tudo pelo olhar da experiência para tornar suas personagens humanas."É a partir desse pressuposto que o primeiro título a ser apresentado no evento é o registro em vídeo de Vereda da Salvação. Montada por Antunes Filho em 1993, a peça é um relato épico. Mostra um grupo de trabalhadores rurais capturados pelo fanatismo religioso. Evoca Os Sertões, de Euclides da Cunha. Não poderia, portanto, ser considerada propriamente como autobiográfica. Mas bebe diretamente no convívio que o artista teve com os camponeses. "Vereda da Salvação, antes de ser um fato real longínquo ao meu mundo, está profundamente enraizada na minha memória. Suas personagens fazem parte da mesma paisagem social, da mesma realidade política a que todos pertencemos", disse o dramaturgo, em uma inspirada entrevista concedida em 1964. Para além das discussões e dos registros de encenações passadas, o evento centra suas atenções em trazer novos olhares para o legado do autor. "A ideia é manter o Jorge presente e não só no debate, mas especialmente no palco, que é o seu lugar", observa Beth Azevedo. Montada pelo grupo Tapa em 2008, A Moratória retorna à cena. Aqui, Andrade dá forma dramática à relação conflituosa com seu pai - questão incontornável de sua ficção. Captura, de quebra, a crise econômica dos anos 1930 que levou a aristocracia cafeeira à falência e marcou a emergência de uma nova classe dominante. Densa na urdidura dramática e na temática, A Moratória figura como clássico inconteste do repertório nacional. Essa, porém, é uma das raras versões contemporâneas que recebeu. "Injustamente, é um autor pouco montado. Talvez pela dificuldade que o seu texto represente tanto para os atores quanto para a direção. São diálogos literários. Em certa medida, lembra muito Eugene O'Neill. Tem muita dificuldade de falar das coisas das quais precisa falar. Vai mexer em raízes pessoais muito fortes", constata o diretor Eduardo Tolentino. Tanto existe ainda por descobrir desse artista que uma parcela considerável de seus textos permanece inédita. Por esse terreno quase desconhecido vai se aventurar a Cia. do Latão. O grupo do diretor Sérgio de Carvalho apresenta uma leitura dramática de Mundo Composto. Trata-se de um texto breve, que o criador publicou originalmente como reportagem para a revista Realidade. "As peças curtas trazem esse lado político da obra dele de forma mais evidente. São obras, como a que escreveu para a Feira Paulista de Opinião, em que ele tenta interferir diretamente no debate do momento", acredita Carvalho.Em O Mundo Composto, o dramaturgo registrava o diálogo entre dois camponeses. Como em um repente, eles discutem a existência de Deus e do Diabo. Defendem, cada qual, o seu lado. Falam de fé e incredulidade. "O texto foi escrito em 1972, no auge da ditadura. Seu sentido político não é tão direto, mas mostra um cenário mortificado." Jorge Andrade esteve constantemente a traçar mundos em decomposição: quando retorna à casa paterna, lugar da nostalgia e da perda. Quando detém-se a observar homens e mulheres do campo. Seus textos eram exercícios de prospecção. Mergulhos no lago escuro da memória, dos quais ele retornava, sempre, com algo novo nas mãos.

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