Artérias da pedra e outros veios

Poemas do volume no qual trabalha atualmente o paulista Mario Chamie - ainda sem data prevista de lançamento -, após bem-sucedida incursão na prosa ficcional com Pauliceia Dilacerada (2009)

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

AS ARTÉRIAS DA PEDRAA pedra não filosofa.Ela bloqueia no seu blocode pedra o pensamento e a sua corda.A pedra não acorda as coisasnem dá cordapara metafísicas plangentes.No seu bloco bloqueado,a pedra dispensa a ânimae o ânimo do fluxo líquidodas correntes.A pedra não corre.Ela se estacae se adensano lugar em que se assenta.Quieta,a pedra é menos liçãoe mais experiência.Contra ela batem coisas,batem ventose batem outras pedrasdiversas.Mas ela não se movenem se dispersaem sua imóvel siesta.Nem no sono de sua siesta,a pedra regurgita por dentroalgum pétreosom de estômago.Ou algum flúor indômitode qualquer ânsiade vômito.A pedra não metabolizanem expulsa seus alimentosnos íntimos arcanosde seu templo.Ela concentra nos intestinosde sua naturezaa cúpula fechadae a argamassa espessade sua igreja.Isto porque a pedramais dormedo que come.E o sono dela não é nem sonsonem elétrico.Seu sono de pedranão é o sono épico ou líricode um homem que sonha levee aceso.Bem ao inverso,seu sono,de chumbo eterno,é um sonho paralíticoe paquidérmico.Tanto que,silêncio calmo,as artérias da pedrasão átomosque, dentro dela,não se explodem,compactos que sãoem seus ásperos conformes.Pois esta é a ciênciade seu nome: - a pedranão tem as artériasdas árvores,nem as artérias de nosso corpoplantado nas veiasde nossa carne.Dessa ciência,a diferença nasce,magna e plena,entre a pedra(com o minério esquivodo seu todo exposto)e a nossa carne(com o mistério vivono peso de nosso corpo).Por isso,a diferença da ciência da pedraestá no confrontopronto de suas artérias.E a diferença é esta:- As artérias da pedrasó se fixam no tododos seus átomos exanguese impávidos.Assim inerte, a pedra inscreveo impériode seu monólogo fechado.- As artérias do corpo,ao contrário,só se movem na carnedo nosso sanguee seus intrépidos coágulos.Assim ativa,a carne avivao espelhode seu diálogo sangrado.A CHÍCARAChícara posta sobre a mesa.Ela traz em sua alça a nostalgia dos dedos.É preciso muita mão para alçara chícara à altura dos seus penedos.Não que o penedo seja algumamontanha que se busca. A questão não é assim difusa.Antes de tudo, há a chícara em si:é porcelana, é louça?É plataforma de formas sobre o pires?É a borra do café quepousa para a leitura dos elixiresde alguma sorte sem rumo?A chícara em si é e não é o dado bruto de um vácuo, cujo núcleo não é o mundovago de uma sede vaga e seca.O oco da chícara dita outra regrasobre a mesa: -a regra da ausência cheiaque, vazia, se preenche por si mesma.LIVRO ABERTOA rua é um livro aberto.O olho minúsculo de um pássaroé um livro aberto.A porta fechada de um quartoé um livro deserto.Tenho escrito palavrasde muitos livros refeitosque, surdos e quietos,tecem límpidos e clarosos seus herméticos enredos.Na rua leio o que soletro.No minúsculo olho de um pássaronão leio o que vejo,embora pássaros e ruasme ensinem o que percebo.Me ensinam, por exemplo, o desterro aberto e refeito de todo livro relido,se atrás da porta fechada,refaço o seu silêncio desfeito,releio o meu silêncio perdido.Nome: Mario ChamieIdade: 77 anosOrigem: Cajobi (São Paulo)Principais obras: Objeto Selvagem (Quiron/MEC, 1977), A Quinta Parede (Nova Fronteira, 1986), Caminhos da Carta (Funpec, 2002), A Palavra Inscrita (Funpec, 2004) e Pauliceia Dilacerada (Funpec, 2009)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.