Arte para conhecer o mundo

Com filmes e obras emblemáticas, mostra exibe sua efervescência criativa

PUBLICIDADE

Por Maria Hirszman
Atualização:

Lygia Pape costumava dizer que em sua obra não havia fases; que criava em círculos concêntricos, retornando sempre a algumas mesmas questões, de forma sempre nova. Pensava, como Heráclito, o filósofo pré-socrático, que não se podia banhar duas vezes na mesma água. Talvez seja essa certeza simultânea, de que é necessária uma renovação permanente e a persistência em percorrer criativamente os mesmos círculos de indagação, que explique como a artista conseguiu recriar-se tantas vezes permanecendo fiel a um conjunto bastante restrito de questões, formais e conceituais.A exposição, que será aberta no sábado e ficará em cartaz até maio na Estação Pinacoteca, não dá conta da totalidade da efervescência produtiva da artista que, como sintetizam os curadores Manuel Borja-Villel e Teresa Velázquez, "passou com facilidade do poema à pintura, da pintura ao objeto, do objeto ao sensorial e daí ao cinema e aos lugares coletivos". Infelizmente, o espaço aqui é reduzido (no Reina Sofia a mostra ocupou uma área de 1,5 mil metros quadrados e atraiu mais de 180 mil visitantes), o que obrigou os curadores a fazer um recorte mais drástico. "O ponto de partida para a seleção de obras foi qualitativo, não quantitativo. Procuramos transmitir a articulação poética através de um conjunto significativo de obras", precisa a curadora.A seleção traz boa parte de suas obras mais emblemáticas, como as experimentações iniciais com a gravura e o desenho, ainda marcadas por uma reflexão geométrico-construtiva; a Roda dos Prazeres (ação multissensorial que explora o paladar e a visão e exige a participação do visitante); e os antológicos Livro do Tempo e Livro da Arquitetura. Ilumina também alguns aspectos bastante interessantes e mais radicais de sua trajetória, como sua relação - ainda pouco conhecida - com o cinema. "A ênfase talvez seja em razão de filmes que eram tidos como perdidos e foram recuperados como o caso de O Ovo e Divisor, realizado na favela, ambos de 1967, que ainda serão digitalizados e tratados em melhor resolução", conta Paula Pape, filha da artista e diretora do Projeto Lygia Pape no Rio.A instituição idealizada pela artista é responsável por preservar a sua obra e é corresponsável pela realização da atual mostra. Todos os filmes criados por ela serão exibidos. "Também foi feito um trabalho de resgate dos letreiros e cartazes do Cinema Novo que ela realizou", acrescenta Paula.Não será possível no momento reeditar o Divisor, ação que propõe a integração num único e coletivo movimento de dezenas de pessoas, convidadas a "vestir" uma grande tela de 30 metros quadrados, com diversos talhos para a passagem das cabeças, como foi feito na Espanha. Mas a obra estará representada numa projeção em grande dimensão da performance que foi promovida durante a última 29.ª Bienal de São Paulo, em 2010, no Parque do Ibirapuera. Para compensar, os brasileiros vão ter a possibilidade de ver remontado o Balé Neoconcreto I e II, uma coreografia de formas e luzes, nas quais os bailarinos são formas abstratas, que até hoje teve raras apresentações. Segundo Teresa Velázquez, esse trabalho era, no parecer do crítico Mário Pedrosa, "a mais clara expressão da incorporação do tempo subjetivo na obra de arte, preludiando a participação do espectador, um aspecto crucial das práticas artísticas do presente". As apresentações vão ocorrer nos dias 30 e 31 deste mês, no Sesc Bom Retiro. Também será organizado um ciclo de palestras e lançado um alentado catálogo. A publicação, considerada por Paula Pape como o "primeiro grande livro de Lygia Pape", reúne textos de diversos autores; importantes documentos de época; um alentado ensaio de Paulo Herkenhoff; textos, poemas e depoimentos da autora; além de uma ampla iconografia.O outro. Investigações acerca da linha, da luz, do tempo e do movimento são quase onipresentes na obra de Lygia Pape, que alia um grande rigor formal a uma permanente reflexão de caráter social e político. Quer pelo viés antropológico, quer pela militância política, que lhe custou alguns meses de cadeia, Lygia jamais transformou o rigor formal que caracteriza sua produção em elemento de fuga ou escape da realidade social de seu entorno. Como explica Luiz Camillo Osorio em texto republicado no catálogo, "a beleza plástica de suas instalações não escondia, mas potencializava sua força política".Para ela, a arte era "o modo de conhecer o mundo". Se interessa pelo outro. O insere e procura transformá-lo com o trabalho, como ocorre por exemplo na interação dos participantes da ação Divisor, uma metáfora da relação social bastante significativa em período de ditadura militar e que convidava as pessoas a integrarem um corpo único. Lygia também se dedicou a temas como a dramática situação dos índios (desenvolvendo trabalhos como a série Manto Tupinambá, infelizmente ausente da exposição) e olhou com atenção para a cidade à sua volta. Realizou uma série de registros de aglomerações de rua que fez ao longo de muito tempo em suas perambulações pelo Rio e que recebe o sugestivo título de Espaços Imantados, também apropriado como título da mostra. Procurou transmitir esse interesse a seus alunos do curso de arquitetura, apresentando-lhes a realidade desconhecida e criativa das favelas, dos bairros da zona oeste carioca e da baixada fluminense. "Como se pode ser um bom arquiteto sem conhecer a própria cidade?", se perguntava a artista, ela própria uma incansável investigadora da potência transformadora da arte. LYGIA PAPEARTISTA E PROFESSORANascida em Nova Friburgo (1927) e morta no Rio (2004), criou uma obra plural. Lecionou no Parque Lage e, em 2009, ganhou menção honrosa na 53ª Bienal de Veneza.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.