Arte biográfica carente de respostas

Mostra comprova que obra de Niki de Saint Phalle nada tem de alegre ou leve e reflete uma vida torturada e sombria

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Por SHEILA LEIRNER e PARIS
Atualização:

Quem pensa conhecer a obra de Niki de Saint Phalle (1930- 2002) e se encanta com as cores e a alegria que animam as Nanas ou as esculturas realizadas com Jean Tinguely na famosa Fonte Stravinsky do Centro Pompidou, agora poderá mudar o seu ponto de vista. Na retrospectiva no Grand Palais, as 200 pinturas, colagens, desenhos, esculturas, filmes, maquetes e performances não deixam dúvidas: pouco há de esfuziante ou naïf neste belo trabalho de uma vida que também foi sombria, torturada, violenta.A visita à exposição é mais o acompanhamento de uma narrativa interior da artista do que a exploração crítica ou histórica de suas conquistas plásticas. Por meio de uma cenografia excepcional, o percurso cronológico encena o "teatro" biográfico da artista, assim como a sua busca de paradigmas artísticos. Modelos que pudessem expressar as suas interrogações e, mais do que isso, servir como "curativos" para as suas feridas psíquicas.Nos documentários e entrevistas - mesmo quando grita ou se exprime com veemência - é sempre o tom elegantemente mundano e indignado que sobressai. Herdeira de todos os paradoxos, a bem-nascida Catherine Marie-Agnès Fal de Saint Phalle, descendente de uma poderosa e aristocrática família franco-americana de banqueiros, teve a educação católica e a infância dourada irreparavelmente manchadas por uma mãe torturadora, estupro de seu pai aos 11 anos e suicídio de dois irmãos. Possuiu uma beleza extraordinária a ponto de ser modelo e capa de revistas como Life,Harper's Bazaar e Vogue, mas julgada "perigosa para si e para os outros" foi internada em hospital psiquiátrico, recebendo eletrochoques aos 23 anos. Descobriu a fúria sagrada (e terapêutica) da criação, porém desde cedo começou a sofrer de graves problemas pulmonares em consequência da inalação dos vapores e poeiras do material de trabalho, para morrer, aos 71 anos.Cada obra é um depoimento que contém uma leitura psicanalítica. Algumas são surpreendentes, como o enorme painel King Kong (63), em que ela associa personagens políticos, um parto e o ataque premonitório às torres de uma grande cidade. Também impressionam os seus altares sacrílegos, nos quais morcegos e armas convivem com crucifixos. Suas generosas Nanas, mulheres gigantes, são "mães que devoram, mães que ninguém gostaria de ter", diz ela. No trabalho O Funeral do Pai, também inspirado pelo surrealismo, Saint Phalle enterra definitivamente aquele que a feriu e foi evocado em seu livro de memórias e em seu primeiro longa, Daddy.Da mesma forma, sob o espírito dos anos 60 e 70, até o final, esta artista, leitora de Simone de Beauvoir, fez de cada obra, um "manifesto", a favor da revolta, fantasia, liberdade, arte, do sonho e dos direitos das mulheres. Única mulher do "Novo Realismo", espécie de Frida Khalo francesa, ela pintou a violência quebrando os objetos do cotidiano, integrando-os aos quadros. Tudo que fez, inclusive Jardim do Tarô na Toscana, tinha o intuito de conquistar o mundo e um público cada vez maior.Foi a heroína do pop aos happenings e seu engajamento político e social é total. As telas com o gesso que encobre latas de tinta colorida foram perfuradas por carabinas deixando a tinta "ensanguentar" a superfície. Os vídeos que documentam estas ações transmitem uma violência extrema, o prazer da subversão. Niki de Saint Phalle se opunha à visão convencional da arte, à religião, à sociedade patriarcal, à guerra fria, à guerra da Argélia e à legalização do porte de armas nos Estados Unidos.Não que o seu trabalho possua a carga espiritual dos gigantes que ela admira e aos quais a sua obra faz referência, como Gaudí, Facteur Cheval, Pollock ou Dubuffet. É um trabalho terreno, ligado à matéria e à simbologia que decorre dela: corpo, vida, sexo, maternidade e morte. Por trás do possível prazer, a exemplo de Matisse - que também é erroneamente entendido como "alegre, leve, decorativo" -, há nesta obra autobiográfica vingativa e angustiada, sobretudo uma procura obsessiva e raivosa de respostas. Ao sair de sua retrospectiva, podemos novamente nos perguntar se existe grande arte sem sofrimento.

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