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Armando Freitas Filho lança "Fio Terra"

A marca do flagrante reveste sua poesia. Com este lançamento ele dá continuidade a sua obra poética, iniciada em 1963

Por Agencia Estado
Atualização:

Com Fio Terra (Editora Nova Fronteira, 86 págs., R$ 17), Armando Freitas Filho dá continuidade a uma obra poética consistente, iniciada em 1963, e se confirma como uma voz significativa na poesia brasileira contemporânea. Numa entrevista recente, o poeta declarou que "com a idade modifica-se tudo, geralmente para pior". A segunda metade da frase não é verdadeira no caso da sua poesia, pois a passagem do tempo não gerou neste livro as marcas comuns da facilitação. Pelo contrário, o leitor poderá encontrar aqui alguns dos textos mais impressivos do poeta: Dois Estilos de Representação, 13/VI/98, Boca Seca, Prega-Rainha Suíte e os dois poemas de homenagem a João Cabral. Como objeto gráfico, o livro mostra cuidado de composição e disposição. Fio Terra tem duas partes. A primeira, que dá nome ao volume, se apresenta como uma espécie de diário, trazendo 33 textos, datados entre 5/5/98 e 5/7/98. A segunda, intitulada No Ar, se compõe de 27 poemas. Enquanto na seção Fio Terra os textos vêm em seqüência contínua, como parágrafos num texto em prosa, na seção No Ar os poemas breves iniciam sempre na página ímpar, ficando em branco quase todas as pares. Por força dessa distribuição, o equilíbrio numérico dos textos de cada seção não corresponde ao espaço que ocupam no volume, pois o diário se comprime no terço inicial. Essa disposição talvez possa sugerir a condensação e a expansão associadas aos títulos (terra e ar); de qualquer forma, postula diferentes formas de leitura para cada uma das seções. Na primeira leitura, a parte inicial oferece alguma resistência: a notação de diário, as marcas de continuidade e indicações de contexto pouco compreensíveis confundem o registro da leitura, produzem o equívoco da forma. A insistência nas datas exatas parece, a princípio, em choque com a natureza dos textos, pois nem há progressão entre eles, nem vetor de continuidade. Ao mesmo tempo, alguns (29/VI/98, 8/VI/98 ou 15/VI/98) brilham isoladamente, sem depender do que os rodeia. Por isso, o sentido mais interessante da forma só se revela quando se desiste de buscar progressão, ou remissão de um texto a outro, ou ainda sentido de unidade ou totalidade (isto é, quando se desiste da leitura como "diário"). A marcação cronológica e a corrida disposição gráfica não são um princípio de composição ou de arranjo seqüencial ou temático e sim a reivindicação de que existe (ou deveria existir) uma forte vinculação do poema à experiência pontual e ao cotidiano. Funciona a forma "diário", assim, como uma espécie de declaração de princípios. E é por isso que essa parte acaba sendo o pórtico do livro e lhe definindo, com o nome, o sentido principal. Em No Ar, os textos vêm despidos de marcas externas de conjunto e de referências à época ou circunstância de produção. Do contraste, o que ressalta é o caráter atemporal dos poemas e das experiências neles formuladas. No "diário", os textos produzem a proximidade da experiência, apresentam-se como primeira depuração de um material que ainda guarda as marcas da origem, atestada pelas datas e pela vontade de fluxo contínuo, de notação centrada numa perspectiva íntima, numa "personalidade" identificável com o poeta; em No Ar, desaparecendo as notações contextuais imediatas, bem como as referências à temporalidade externa e o tênue fio condutor e unificador do discurso confessional, o discurso se torna mais "impessoal" e mais ostensiva a reflexão metapoética, a inserção da voz lírica na tradição. Nesse sentido, o centro de força é, aqui, o poema que dá nome à seção: No Ar. Celebrando a "arrastada voz de rádio a válvula", o poema traz para o primeiro plano da atenção a voz sem origem, só representação, momento de tensão entre os azares do desempenho e dos instrumentos de recepção. Percebida a especificidade de cada parte, a releitura permite divisar o sentido do conjunto. O caráter introdutório do "diário", bem como o título geral do volume e o da segunda parte mostram que a metáfora central do livro é a transmissão da energia. Da energia bruta, que se escoa no cotidiano indiferenciado e da qual se recolhe o que é possível; da energia difusa e coletiva, da tradição que cada poeta captura, processa e difunde, conforme os instrumentos do seu tempo. Se essa metáfora une tensamente as duas partes no que diz respeito aos temas e questões, também dá unidade ao conjunto a recorrência dos procedimentos poéticos: o verso que é basicamente quebra sintática e rítmica e que parece, por isso, de corte arbitrário; a suspensão brusca do discurso no final do texto ou no meio de um bloco de sentido; o destaque da palavra rara; a súbita alteração do registro; o anacoluto e a elipse como princípios de composição. Do ponto de vista da fatura, os pontos fracos são os momentos em que o jogo paronomástico, o trocadilho, aparece como puro procedimento indicial, de modernidade duvidosa. Por exemplo: "Onde nenhum endereço/ se abre para o pouso/ e que prossegue em suspensão/ dentro de um único fôlego: / não-ponte, pênsil, não pense/ em desfecho repetido de onda/ ou no disparo que prevê/ a futura ferida do seu beijo." (Arco, grifo meu). Ou ainda: "Deus é um dado a mais à mão/ a um dedo só de mim, impercebido?" (6/IV/98). Já os momentos mais fortes são aqueles em que à "quase-prosa" reflexiva, ao recorte do verso aprendido em Cabral, se acrescenta um toque de obscuridade, sugerindo o poema uma zona de inapreensibilidade de que ele é, mais do que o resultado, a presentificação. Como em Nublado. Na entrevista já referida, Freitas Filho dizia que "o poema contemporâneo não necessita de pontos finais, ele não ´acaba´ exatamente. Um certo ar de flash, de flagrante, de acaso, de ambigüidade enfim, são elementos que devem ser recuperados". Não sei se esses elementos foram algum dia perdidos na poesia contemporânea. Creio que não. De qualquer forma, eles respondem pelos melhores momentos desse pequeno livro que é, no conjunto, muito notável.

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