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Armando Freitas Filho dá continuidade à sua autobiografia poética

Em ‘Dever’, versos continuam tão impactantes em imagens quanto precisos na forma

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Por Redação
Atualização:

Novo livro do carioca Armando Freitas Filho, Dever constela já no título os múltiplos sentidos da palavra e suas metamorfoses no tempo, que são marcas deste autor de obra prolífica e consagrada. Reunindo mais de cem poemas escritos ao longo dos últimos seis anos, o livro se divide em três seções – Suíte, Anexo e Numeral –, que tematizam, em três dimensões do tempo, o dever como lição nos aprendizados caligráficos de infância, enquanto tributo ou ética no mundo, no presente das relações humanas e das afinidades literárias, e o outro, mais profundo e silencioso, de viver, que oculta como seu duplo invisível o devir, assombração da hora final que persegue o poeta desde a epígrafe de Clarice Lispector que abre o volume.

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Numa escrita que “é treino, ginástica, rascunhografia”, e que move o pensamento em suas especulações diárias, reúnem-se, num único poema, passado, presente e futuro. Curiosamente, essas três dimensões compõem também as etapas de criação de Armando Freitas Filho, que antes escreve seus poemas à mão, depois à máquina, para só então recorrer ao computador. Nessa primeira fase caligráfica, que evoca em Suíte a casa perdida da infância, Armando dá continuidade à sua autobiografia poética, cujos versos permanecem sendo tão impactantes em imagens quanto precisos na forma. Assim, o autor vai montando seu puzzle, num jogo inacabado a cada livro e que, no entanto, ensaia a todo momento seu término, nisto que será a última peça do jogo, o poema na sua letra final, o relógio interno do corpo atingindo o zero.

Par a par com as memórias familiares de Armando, reescreve-se em Dever seu parentesco poético com Drummond, entre outros grandes mestres que há muito o acompanham, como Bandeira e João Cabral. Não bastassem as ressonâncias implícitas dessa genealogia, o tributo surge nos poemas de Anexo como um dever que se cumpre no presente entre outras homenagens a amigos e a eventos inscritos na atualidade pelo calor das circunstâncias ou pela violência, como nas tragédias em Realengo e na Candelária. E porque esse dever pressupõe uma fidelidade do autor à sua poética, nada mais justo que a terceira parte do livro continue a série. Numeral, que nasceu com Máquina de Escrever, há dez anos, tem funcionado como uma espécie de metrônomo poético dentro da obra de Armando, contando o tempo enquanto reflete musicalmente sobre a própria fatura do poema, em fragmentos ou capítulos de um livro para o futuro que reverterá em ordem “a desordem do post-mortem”.

Ao compasso dessa máquina, o poeta desempenha uma arte da repetição que, embora dialogue com outros poetas, vem de um projeto legitimamente autoral. Reflexiva, é uma arte que se atém inclusive ao “estudo do susto”, àquilo que não se conforma à exatidão e envolve “o risco de não conseguir luz bastante”. É aí que o corpo assume na poesia de Armando um peso “substantivo, sujo, subjetivo”, que torna íntimo o corpo de sua escrita, suscetível ao desvio, à vertigem, à angústia no escuro antes do sono. Entre lembrança e esquecimento, contar o tempo inspira também recontá-lo nas contas de um rosário de infância. O gosto do livrinho da vida, o poeta o sabe pelos múltiplos sentidos da palavra e do corpo que reinscrevem o passado no presente em alguns dos mais sensíveis poemas de Dever. Reincidente na obra de Armando, o mar, que já intitulou um de seus livros, corporifica a subjetividade de sua memória e sua morada, num ir e vir de onda “que se forma desmanchando-se”. O que fica, latejante, “é o empenho da mão náufraga: / não salva, não pega – água ou pedra / mas sente o precioso instante raro”. Um empenho que se sobreleva no tempo e, numa aritmética lírica, hoje permite ao autor comemorar, aos 73 anos de vida, 50 deles dedicados à poesia.

DEVERAutor: Armando Freitas FilhoEditora: Companhia das Letras (168 págs., R$ 36)

MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS (ILUMINURAS), ENTRE OUTROS

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