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Argan combate a arte que se exclui do mundo

Coletânea Projeto e Destino reflete a riqueza da reflexão do historiador italiano

Por Agencia Estado
Atualização:

Giulio Carlo Argan é singularíssima figura no universo da crítica de arte e arquitetura e do pensamento e da ação sobre a cidade. Ele não apenas escreveu livros: enfrentou a cena dura das ruas quando aceitou tornar-se prefeito de Roma sob a bandeira do socialismo. Muitos intelectuais evitam esse confronto não com o real (o mundo das idéias é tão real quanto o outro), mas com a esfera da transposição imediata das idéias para a prática. Consideram que sua função é falar sobre, produzir opiniões. E vêem a ida para a prática como um erro técnico. Claro, essa atitude pode ser vista como tentativa de poupar-se do erro. Argan, pelo contrário, encaixa-se na tradição mais antiga do pensamento ocidental, defendida por Platão ao reclamar para o filósofo o dever de governar. Como Argan nunca se cansou da história e, portanto, em seus termos, nunca foi um utopista, decidiu que sair às ruas ? não para protestar, mas para fazer ? era o que lhe cabia. Seu sucesso em Roma é discutível ? mesmo porque a ex-capital do mundo talvez seja ingovernável. O que importa é ter ido às ruas pôr em prática suas idéias sobre a ação política em estrito senso: a ação para a polis, para a cidade. Mas, não é esse o tema de Projeto e Destino (Editora Ática, 336 págs, R$ 29,90) coletânea de ensaios de variada extensão escritos entre o final dos anos 40 e o infausto, aqui no Brasil, ano de 1964. Neste livro, trata-se de refletir sobre a arte e a arquitetura do momento. E Argan o faz de um modo abrangente, visceral. Ele não propõe esquemas teórico-técnicos secos: seus textos misturam arte e vida, religião e política, consciência e moral, história e literatura. O resultado é um material denso, pedindo leitura cuidadosa. Argan é um pensador poderoso, sofisticado, seus movimentos são de fundo. Mesmo quando se discorda dele, lê-lo é crescer na própria reflexão ainda que em rumo contrário. O principal texto é o primeiro, de 1964, que empresta o título ao livro. Sua palavra de ordem ? a importância central da arte para o problema geral da civilização contemporânea ? é mais que animadora para quem, como este autor, acredita que a mola da existência humana em sociedade no século 21 será feita de cultura e a arte. Escrever isso em 2000 pode não ser particularmente atrevido, embora a maioria das administrações públicas, mesmo as iluminadas, e dos intelectuais públicos, mesmo os engajados, continuem acorrentados ao arcaico paradigma econômico. Mas escrever isso em 1964 tinha sua audácia. Mesmo os estudantes sempre felizmente insatisfeitos esperaram até 1968 para pedir a imaginação, portanto a arte, no poder. Em 64, Argan constata uma forte crise na arte. Não a crise da falta de sucesso mundano (tema de outro pensador, Eric Hobsbawm, em outro livro, Behind the Times), mas crise no sentido que Argan chama de rigoroso, aquele envolvendo a artisticidade da arte. E que se traduz pelo fato de a arte colocar em dúvida sua razão de ser e fazê-lo despida do impulso crítico. Nessas poucas palavras, Argan apresenta de outro modo seu credo ? a arte como instrumento do conhecimento, não da diversão ou da decoração ? e seu temor de que a arte não só estivesse se transformando em outra coisa como parando de se transformar para, possibilidade histórica, cessar de existir. Os exemplos que toma para sua discussão são os da arte neoconstrutiva (que chama também de gestáltica) e a arte de ?reportage social?, que inclui a pop art, dois movimentos que marcaram os anos 50. Seu ponto de partida, para entender aonde quer chegar, é que a partir do século 17 a história da cultura torna-se a história do predomínio da prática sobre a teoria, da experiência sobre a idéia, em processo intensificado no século 20 até que ?a teoria se transforma em teoria da prática e a prática, em idéia da experiência?. E pergunta se ainda há lugar para a ideação e, havendo, se seu modelo pode ser a ideação artística ? modo prudente de indagar se a arte pode pensar o mundo e se seu modelo de pensamento pode servir ao mundo. A resposta não anima. A arte neoconstrutiva se relaciona com o desenvolvimento tecnológico rigoroso e a pop art, com o aparato da informação e do condicionamento, os mass media. A primeira é seletiva, mas abstrata e a segunda ?concreta?, porém não seletiva. Aquela é programada e mostra-se em séries de imagens pré-ordenadas; esta é não programada, mas limita-se a extrair algumas imagens do acúmulo do mundo e dá-las como simbólicas (da situação e da impossibilidade de escolher por parte de quem está nessa situação, incluindo o artista). A primeira reduz a atividade artística ao procedimento ideativo-operativo; a outra elimina o procedimento ou declara sua inutilidade. Assim, ambas poéticas se dissolvem sem influir no fazer. E ambas são inconscientes: o racionalismo da primeira é aparente, porque seu movimento é automático (como na indústria) e o da segunda é simplesmente inexistente. O neoconstrutivismo torna perceptível não o objeto da percepção, mas a percepção em si, como processo, e a pop nem lida mais com o objeto, mas apenas com sua imagem reificada. A coisa intencionalmente posta de lado pelo neoconstrutivismo é reencontrada na pop art como ?caída do céu, aviltada, deformada, imprestável, consumida, apanhada no monte de lixo?. As duas correntes são modos da arte não-ideológica e a pop é mesmo de um ?apoliticismo reacionário?. O resultado de ambas é desencorajar a reação moral. A arte de Oldenburg (?este Dalí que não teve sequer o espírito de fazer um pacto com o diabo?), de Lichtenstein (?um pedante?), Warhol, Segall, é uma arte da deterioração. A arte do passado partia de um juízo de valor e conferia ao objeto uma mais valia; a de 50/60 parte de um não-valor e a ele acrescenta uma outra desvalorização, ?aquela que degrada o objeto em coisa?. Por tudo isso, nenhuma das duas correntes se mostrava como uma verdadeira poética, a qual implica uma concepção global da arte; ambas eram soluções unilaterais, sectárias. Diante delas, só cabia ?torcer? por uma ou outra, como no futebol. Nada de sério. De sério, sim, a ausência de um projeto crítico para a arte (e para a arquitetura, em situação não muito diversa) e a conseqüente entrega passiva ao destino imposto de cima para baixo. O ato em si que faz a arte naquele momento é inquietante; pior é o que parece ser seu agir ulterior. A pergunta é: o que a arte traz agora em si, qual o problema que coloca para o futuro? É um problema que ainda pede a solução artística ou a exclui? Ou é a arte que se exclui do problema ? e do mundo? A partir desses comentários depreende-se seu modelo para a arte, que deveria pensar o mundo, promover a reação moral, mostrar-se contra todo tipo de conservadorismo, sem ambigüidades ideológicas ? e pelo menos provoca a emoção. Não é exatamente assim que se tem mostrado a arte desde a data desse texto. Seria interessante conhecer a opinião de Argan sobre, por exemplo, o conceitualismo, que viria pouco depois armado sobre o princípio da superioridade da idéia sobre a prática e o processo, o que poderia tê-lo agradado. Mas se ele partilhou a opinião de Hobsbawn ? ?conceitualismo é o prato do dia porque é fácil e porque é algo que mesmo aqueles sem nenhuma habilidade podem fazer (...) i. e., ter idéias, principalmente se não precisarem ser boas ou interessantes? ? sua caneta ficaria em brasa novamente... Argan tem consciência de que pode estar julgando uma cultura a partir de outra, a sua, a da arte moderna didática, do racionalismo. E tenta não ser maniqueísta. Mas, como não julgar uma cultura a não ser a partir de outra ? ainda mais quando a cultura, no tempo de vida de uma pessoa, não pode deixar de ser uma mistura de uma e outras culturas, nunca se apresentando como uma cultura que se separou de outra? Argan faz o que pode: ver com os próprios olhos, como uma pessoa viva e deste mundo. Alguém com paixões e que às vezes esconde, como todos nós, seu principal argumento. Assim, rejeita Gaudí porque sua arquitetura ?não produz emoção?, só ?excitação crescente?. Quando se lê sua objeção a Le Corbusier por ter feito em Ronchamps uma arquitetura sacra e não apenas religiosa, percebe-se que na verdade Argan tem contra Gaudí a religiosidade católica do catalão ? que, no entanto, não transparece na sua arquitetura laica. Já lemos agora em outros lugares objeções como as de Argan às duas poéticas citadas e alguns de nós já as teremos endossado de várias maneiras. Como ele não cita muitos exemplos concretos de obras das duas correntes, fica a sensação de que por vezes exagera. Nem tudo da pop é lixo embora quase tudo dela de fato só produza excitação, como outras artes dos últimos 30 anos ? e excitação nem sempre crescente. Mas seus argumentos são fortes e deveriam ser examinados, sobretudo pelos artistas. Lendo Argan, cabe perguntar se, imersos no processo cotidiano da arte, realmente usamos o juízo crítico diante das novas propostas da arte e as relacionamos com o que está fora do mundo da arte. Em particular o que queremos que a arte transforme o mundo. Hobsbawn acha que aquilo que a arte do século 20 deu em favor de uma sociedade melhor ? incluindo a Bauhaus, fonte de muito neoconstrutivismo que Argan repele ? não foi suficiente. Talvez não. Mas talvez a arte possa continuar tentando, e nesse caso cabe perguntar pelo projeto que a arte tem para amanhã. De outro lado, talvez Argan e todos esperássemos demais da arte nos anos 60, talvez não fosse isso que podíamos esperar da arte, talvez seja melhor que ela não dê isso. É provável que a arte tenha um outro modo de ajudar o mundo e a vida. Mesmo assim, a pergunta de Argan, que de início parecia muito sessentista, revela-se, no fim, bem atual.

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