Maldita a hora, conta o Nei, em que a dona da casa lhe propôs tomar um banho.
Mirtes, vivendo agora em Paris, tinha sido sua colega na faculdade. Depois de bom tempo sem se verem, ele estranhou a metamorfose que havia convertido a moça recatada num ser loquaz a borbotar modernidades.
Escarrapachada no tapete, baseado e birita entre os dedos, ela desfiava um torrencial relato autobiográfico, cravejado de palavras chulas. Em minutos constatou o Nei que a apagadinha moça de família havia incinerado todos os resquícios da sua formação burguesa – ao ponto de haver planejado e ter tido uma filha à revelia de um incauto inseminador. Graça de menina, a Juju, 5 anos de idade, espevitada que nem a mãe.
Deve ter sido a expressão (cansaço? tédio?) do Nei que levou a Mirtes a interromper seu monólogo exterior: quer tomar um banho?
Bem... – hesitou ele, ali como visita apenas. A amiga insistiu: pra que tanta cerimônia, meu?
Rendido, já ia se trancar no banheiro quando a Juju anunciou:
– Quero tomar banho com o tio!
Mais inesperada ainda foi a reação da mãe:
– Claro, meu amor!
E agora lá estava o Nei, nu sob o chuveiro e o olhar perscrutador da garotinha. Só falta a Mirtes entrar aqui... – temia ele, ensaboando-se freneticamente para abreviar a agonia. Pela primeira vez, considerou vantagem não ter tanta coisa assim para lavar.
– O que é isto, tio? – quis saber a Juju, por pouco não cutucando o objeto de sua curiosidade.
– Isto... isto... – gaguejou o visitante – ... é o pinto do tio...
– Não! O outro, atrás dele!
– Digamos que faz parte do conjunto – esquivou-se o Nei, encerrando, ainda meio ensaboado, aquele que foi o banho mais rápido de sua vida. *A primeira morte
Mal chegou a notícia da morte de dona Almerinda, as quatro irmãs se mandaram para a casa da amiga. Compungidas, cruzaram a varanda, apertaram mãos e, não encontrando caixão na sala, embarafustaram rumo ao quarto da defunta.
Três delas, ao lado da cama, se persignaram e puxaram reza, enquanto a outra, mais saidinha, se pôs de joelhos e, prestativa, deu uma ajeitada nos lençóis. Foi aí que a falecida, numa comprovação de que não o era, repuxou uma perna e exalou um suspiro, estertoso mas ainda não o derradeiro.
Desnecessário dizer que as quatro amigas não tiveram condições de dar as caras quando, no dia seguinte, dona Almerinda voltou a suspirar, agora sim, pela última vez. *Uma questão de tamanho
Eu estava naquela ótica, em Miami, para entrevistar o dono, sobre assunto que nada tinha a ver com oftalmologia. Enquanto esperava, corri os olhos pelos mostruários – e dei com a armação que há anos vinha procurando. Já ia apanhá-la quando chegou o entrevistado, o que me forçou a mudar de ideia: não ficaria bem misturar os papéis de repórter e de comprador. Deixei para depois.
Na saída, porém, o camarada fez questão de me acompanhar à rua, empatando uma vez mais a compra. Dei um tempo até que ele sumisse nos fundos da loja, catei a armação e corri ao caixa.
No avião de volta, fui saborear a aquisição – e me dei conta do quanto a pressa me custara: tamanho errado.
Deu trabalho achar, entre amigos e conhecidos, algum cujo rosto tivesse o diâmetro de um queijo da serra da Canastra. *Incidente a bordo
Por falar em queijo:
O alto-falante já dera o último aviso, mas eu não admitia a ideia de deixar Aruba sem um gouda da melhor procedência. Quando, retardatário, entrei no avião, custei a achar espaço nos bagageiros. Precisei abrir uma dúzia de compartimentos para finalmente conseguir, lá nas primeiras filas, acondicionar, no muque, o meu pequeno fardo, nem tão pequeno assim.
Assim que o avião, tremelicante, apontou o focinho para o alto, um dos compartimentos, adivinha qual, se abriu estrepitosamente, fazendo desabar um trambolho no colo de uma passageira – a qual, depois de um berro que dava a impressão de ser o último, se pôs a rugir os palavrões mais crus da língua portuguesa, o bastante para desestimular um passageiro que, encolhido lá atrás, achou prudente renunciar a seu caro – em todos os sentidos – queijo gouda. *Com seus botões
Ao cabo de meses de luta contra insidiosa moléstia, como os obituários de então se referiam ao câncer, o doutor Afrânio finalmente esticara as venerandas canelas, e a família já se entregava às providências para o velório, que, como se usava, teria lugar ali mesmo, na residência do finado.
Filhos e genros se preparavam para empacotar o falecido em sua derradeira indumentária, quando, aberto o guarda-roupa, de lá saltou a encrenca: nenhum dos jaquetões, nenhum, tinha um único botão. E, sendo madrugada, não havia como comprar o que faltava – sem o que nem se poderia dizer que o doutor abotoara o paletó.
Estavam entregues todos à perplexidade quando um dos filhos se ergueu de arranco e deixou o quarto – para retornar em menos de 1 minuto, trazendo pela orelha um dos netos do defunto, que tinha nas mãos uma caixinha, repleta de craques do futebol de botão. *Pesadelo ao vivo
Aquele não foi o único atrapalho na madrugada em que o doutor Afrânio bateu as suas sempre reluzentes botas.
À meia-noite, exausta, a Elvira, cozinheira vitalícia da família, tinha se recolhido a seu quartinho, em cima da garagem. Acordou pelas 3 horas, empapada de suor e maus presságios, abriu a janela, que dava para a entrada do carro, e, aterrada, achou que o viscoso pesadelo prosseguia: lá vinham uns homens de preto, a carregar um enorme volume.
– Alguma coisa que eu comi – decidiu a Elvira, devolvendo-se à cama.
Como voltasse a acordar uma hora mais tarde, resolveu fazer um café para o pessoal. Ao entrar na copa, vinda da cozinha, deu de cara com uns homens, os mesmos do pesadelo!, que desciam a escada com o tal volume, de agora inequívoco conteúdo. Só faltava a moça, varada de pavor, deixar cair a bandeja com o bule, as xícaras, o açucareiro.
Não faltou.