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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Aquários de Proust

Ela notou que Proust usara o aquário como metáfora da falta do sentido de visibilidade e das distâncias

Por Milton Hatoum
Atualização:

Numa noite fria de junho, aproveitei os últimos minutos do nosso encontro para perguntar a Irma se a memória dela ainda estava afiada. 

Minha amiga respondeu sem titubear:

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“Quando o sono leva uma pessoa para longe do mundo habitado pela lembrança e pelo pensamento, através de um éter onde essa pessoa estava sozinha, mais que sozinha, sem nem mesmo esse companheiro em que é possível reconhecer-se a si mesmo, é sinal de que essa pessoa estava fora do tempo e de suas medidas.” 

Tomou fôlego e acrescentou:

“Mas o duro é quando o sono acaba numa curva súbita e a gente abre os olhos para a realidade assustadora. Porque o prazer do sono não se renova durante o dia, ainda mais nesses dias de tanta ira e de tantas mentiras.”

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Irma talvez seja a mais proustiana das minhas amigas; ela cita em tradução libérrima e voz comovida passagens de Sodoma e Gomorra. Inspirada, acrescenta palavras ou frases que lhe vêm à mente. 

Desde o século passado, quando ficamos amigos, Irma me humilha com sua memória prodigiosa, que parece mais elástica com a passagem do tempo, pois há anos nós dois já ultrapassamos a linha do Equador. 

Quando digo que ela tem a memória de Funes - o personagem borgiano capaz de se lembrar de tudo com todos os detalhes -, Irma sorri com ironia: 

“É a releitura, mon cher. O que mais pode fazer uma aposentada? Reler bons livros, rever filmes, fazer uns bicos e ajudar os necessitados.”

Nasceu numa família humilde de Ribeirão Preto; estudou, batalhou e, como se diz, subiu na vida. Subiu tanto, que alcançou um cargo importante num banco, onde trabalhou por décadas. Não teve filhos; nunca teve carro. Fez viagens ao exterior a trabalho, e andou por muitos lugares do Brasil, para conhecer nossas graças e desgraças. 

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E a Trovoada, vai bem? 

“Por enquanto, ignora a velhice”, ela riu. “Ainda late, salta, brinca e morde. Você conhece minha companheira. A idade dela equivale à minha. E agora tenho quatro gatos.

Não sentem falta de afeto nem de comida.” 

Comprou um apartamento em Perdizes e, mesmo aposentada, dá consultoria a pequenos e médios investidores; não é preciso dizer que fez uma poupança gorda. Agora faz centenas de sanduíches por semana e os distribui aos pobres. 

“Sei que é um paliativo. Mas uma família na miséria, com pai e mãe sem emprego, não sobrevive com 250 reais por mês. Vale o paliativo. Vale todo tipo de ajuda...

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Sanduíches, dinheiro, cobertor, roupa, livros para crianças...” 

Ela se lembrou do passeio noturno da Trovoada e se apressou a voltar a Perdizes. A caminho do metrô, a gente parou diante de um restaurante com janelões de vidro; na sala cheia, a luminosidade era um pouco menos exagerada que as gargalhadas; na calçada, uma mulher e duas meninas esperavam alguma sobra. 

“Você se lembra da cena do aquário?”, perguntou.

Cena de um filme?

“Não, de um livro, do meu querido autor francês.”

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Ela notou que Proust usara o aquário como metáfora da falta do sentido de visibilidade e das distâncias. Foto: Bobby Yip / Reuters

Tirou da bolsa duas cédulas, entregou-as à mãe das crianças e se agachou para conversar com elas. Depois mencionou uma cena do romance de Proust: o restaurante cheio de comensais elegantes, e os pobres na calçada parisiense, olhando através da vidraça o jantar.

Não me recordava desse aquário proustiano, mas sim de outro, talvez no Sodoma e Gomorra. 

“Bem lembrado”, disse Irma. “É uma das cenas com o barão de Charlus. Esse aristocrata é o personagem mais excêntrico, mais cômico e um dos mais perturbados... E quanta desgraça!”

Perto da estação, Irma ainda falava do barão, difamado por parentes e amantes. Ela notou que Proust usara o aquário como metáfora da falta do sentido de visibilidade e das distâncias. 

“Charlus, Charlus”, repetia Irma. “Memé para os íntimos, lembra? O barão é como um peixe que quer nadar além de seu aquário, enganado pelo reflexo do vidro na água. O atormentado Memé não vê ao lado dele um piscicultor, o sujeito todo-poderoso que tira o peixe de seu meio natural para trancafiá-lo sem piedade num cárcere de vidro.” 

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Foram as últimas palavras da minha amiga, antes do adeus. 

No caminho de volta, parei por uns segundos diante do restaurante-aquário, tão pleno de luz e risadas. Reparei numa parede um colar de lâmpadas miúdas, que emitiam um brilho de pérolas falsas. Olhei a calçada: a mulher e suas filhas, ausentes. 

Onze graus, neblina, céu sem estrelas. Andava devagar na noite gelada de junho; pensava na filantropia de minha amiga, no difamado barão de Charlus, nos que estão dentro e fora dos aquários, em Paris, aqui, por toda parte... 

É ESCRITOR E ARQUITETO, AUTOR DE ‘DOIS IRMÃOS’ E ‘CINZAS DO NORTE

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