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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Apostas, cavalos e vedetes

Quando atingi a idade considerada como correta para ouvir “conversas de gente grande” sem ser implacavelmente escorraçado, guardei uma curiosa narrativa de risco, engano e decepção. Se eu tivesse o talento de um bom jornalista, o espírito de um apóstolo ou o gênio de um escritor, esse episódio daria uma parábola ou um conto. Em vez disso, seguem essas maltratadas linhas e um mero caso com o qual eu cumpro meu dever para com vocês, meus eventuais leitores.

Atualização:

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Tio Marcelino tinha um amigo chamado Rochinha cujas farras – arranca-rabos, bebedeiras e, sobretudo, namoros de todos os quilates – eram homéricas. Um belo dia, Rochinha foi pressionado pelo pai. “Filho, essa sua vida de dissipação não pode continuar. Arrume uma profissão. Não vou mais bancar suas patifarias!” O “capadócio”, como ele era chamado, escolheu prontamente a medicina. “Serei um bom médico, certamente um anatomista de calibre”, disse ao pai, um velho português dono da Casa Rocha, o maior empório da cidadezinha onde moravam. Feliz, o pai vislumbrou o filho com um anel verde no dedo. Já o nosso Rochinha fantasiava um silencioso consultório no qual um bando de mulheres lindas e adoentadas esperavam pelo seu diagnóstico recheado de clandestino erotismo.

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O jantar de despedida para o Rio de Janeiro, então Capital Federal, foi um acontecimento. Finalmente, o infame Rochinha, cujo trabalho era não trabalhar e cuja especialidade era criar problemas para o velho pai, iria tomar tenência e encontrar o seu destino.

O leitor ficaria abismado se eu mencionasse a rapidez com a qual o Rochinha chegou à Lapa, achou um hotel confortável e fez camaradagem com cafetinas, p..., malandros, cafajestes, estroinas, bandidos, perdulários, canalhas e marginais. Ali, ele fez todas as anatomias, menos a ensinada na soturna Faculdade de Medicina.

Contudo, foi leal. Visitou a velha escola levado por um professor igualmente frequentador dos lupanares. Graças a esse companheiro de boemia, conseguiu um certificado de matrícula tão falso quanto ele, o qual enviou ao pai distante e, agora, tranquilo e orgulhoso. Este, por sua vez, enviava religiosamente ao malandro uma farta mesada de 3 mil e 200 contos de réis. Os 3 mil pagavam os “estudos” e os 200 réis restantes se destinavam às apostas semanais nas corridas de cavalo que o velho português amava de forma obsessiva.

Rochinha recebia as apostas de 15 em 15 dias e jogava obedientemente. Conheceu o Jóquei Clube, travou amizade com os casais grã-finos que o frequentavam, comeu umas duas ou três senhoras da alta sociedade mas logo viu o imenso desperdício do velho pai, pois jamais os cavalos por ele indicados ganhavam. Como aceitar que o velho sovina jogasse dinheiro fora? Muito melhor, pensou Rochinha, seria aplicar o dinheiro em coisas mais úteis como, por exemplo, com as vedetes do Teatro Recreio, as quais estavam carentes de champanhe e jantares em Copacabana. E assim Rochinha semanalmente investia os 200 réis das apostas nas representantes das artes dramáticas, saltando os cavalos do seu pai.

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Qual não foi sua surpresa quando numa tarde morna e regada aos beijos molhados de Eloina, sua estrela favorita, ele verifica que um dos cavalos favoritos do pai havia ganho o Grande Prêmio!

– Não é possível! O Bola-Bala, cavalo favorito de papai ganhou o primeiro prêmio e eu não joguei.

– Seu pai esquece...

– Nada disso. Ele virá me ver e eu tenho que arrumar o dinheiro e o diploma, pois ele está certo que estou formado. Que sou doutor.

– Deixa comigo. Eu arranjo o dinheiro e o nosso amigo, o Dr. Prego, consegue um diploma.

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– Mas... e se ele visitar a escola?

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– A gente leva ele no Palácio da Flor, que é enorme e ele pensa que é a escola de medicina, com cadáver e tudo. A Alexandra Gaúcha adora ficar nua e se fingir de morta. Nosso anatômico vai ser perfeito, com formol e tudo.

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O velho chegou, viu, e acreditou. Recebeu o dinheiro do prêmio, visitou a escola na qual o seu filho havia se graduado com louvor, conforme lhe disse Chico Candido, o maior cafetão da cidade, que fazia as vezes de diretor. Um lente educadíssimo, enfatiotado de colete, gravata preta e anel de grau, falando apenas em jargão médico. Houve um jantar com alguns alunos e todas as alunas recém-formadas e em formação, regado a excelente vinho português e, em seguida, um baile no qual, reza lenda, o velho dançou um maxixe. Depois, houve uma denúncia e, no final...

O problema é que eu não ouvi o fim porque fui obrigado a ir para o colégio. Na verdade, eu fiquei sabendo de um caso parecido, mas isso aconteceu muito tempo depois.

Aprendi que, quem não arrisca não petisca, pois o risco faz parte do arriscado. Como viver se a vida é um risco?

Opinião por Roberto DaMatta
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