Aposta no carisma de ator

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Por Jefferson Del Rios
Atualização:

"Eu aprendi uns truques" - essa frase pronunciada em Pterodátilos tem alguma premonição irônica. A peça escrita em 1995 pelo norte-americano Nicky Silver teve mais força na sua origem. Agora ressurge como um talentoso truque de espetáculo. A começar pela presença de Marco Nanini. Praticamente impossível não se encantar com este que é, há 45 anos, um dos grandes talentos do teatro brasileiro. Como não gostar dele? É preciso, pois, a delicadeza possível para alguma discordância. Porque algo aconteceu entre o que o dramaturgo quis dizer e o que a engenhosa montagem atual diz. Silver escreveu a peça com uma fúria verbal e de conceitos que fizeram dele uma versão teatral de Tom Wolfe, o jornalista e escritor inimigo dos alpinistas sociais de uma Nova York delirante e dos engajados de salão. Em artigo de ficção explosivo com o título Radical Chique, não poupou os socialites, de músico famoso aos bravios Panteras Negras. Isso foi em 1970, verdadeira era "pterodátila" em relação a Silver que em estilo é, de certa forma, afilhado de Wolfe, um dos pais do "new jornalism", e do dramaturgo inglês Joe Orton (1933- 67). O nome pterodátilo refere-se ao animal pré-histórico e serve para alusões ao possível fim do Homem. Cientistas e pensadores vivem analisando como o ser humano destruirá a Terra e a si mesmo. De Thomas Hobbes, filósofo do século 15, às usinas nucleares do Japão não temos novidades no plano do real. Sobra, felizmente, a arte e nela Silver entra na esteira de Samuel Beckett (o vazio existencial) e Edward Albee (a família corroída), Orton (sexo transgressivo). Em Pterodátilos temos, pela ordem, um filho com aids, uma mãe psicótica, para se dizer o mínimo, um pai frio e omisso e uma filha que é um dos truques do autor e da montagem. Falar demais é entregar os dinossauros de antes e de agora.O espetáculo de Felipe Hirsch e um elenco de primeira querem divertir e causar alguma inquietação na sutil medida entre a maestria e o truque, o que no caso não é algo necessariamente pejorativo. A arte cinética é um fugaz efeito visual (Jesus Soto, por exemplo). Quer causar um impacto, mas sem criar maiores casos, o que o autor, sim, quis e explicitamente. O original é de 1995, quando a aids era um problema real e uma arma de polêmica. A doença continua grave, embora mitigada por novos remédios e a cautela homossexual à exceção dos que fazem sexo como roleta-russa. A peça é do tempo em que se mencionavam práticas eróticas para insultar, matar a família e ir ao cinema. Só que o próprio Silver em recente entrevista baixou o tom ao afirmar não ter mais essa raiva contra tudo o que fez dele, para usar o clichê, uma "metralhadora giratória". Deve ser a razão de ele não ser biografado no programa do espetáculo recheado de referências elogiosas aos envolvidos na montagem. Já que é assim, mais piano, piano, o que foi um manifesto pessimista e cruel pode ser recriado em um mix de Monty Python com a frase de Karl Marx: "A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa".Essa família apodrecida não está em nenhum painel histórico, social, ideológico, etc. Nada. É uma fantasmagoria em chave de humor negro para a espetacular versatilidade de Nanini e achados técnicos que prendem a atenção (o cenário). Nanini usa seu arquivo de recursos interpretativos e quem o viu em Irma Vap e o vê em comédias da TV reconhece os andaimes do desempenho. É um artista em voo de cruzeiro, sem risco ou a invenção que demonstrou admiravelmente em Os Filhos de Kennedy (1977). O mergulho na descoberta está com Mariana Lima, uma das melhores atrizes de sua geração. Há algo de terrível na sua presença como a madame bêbada e alienada. Os papéis dos rapazes homossexuais com temperamentos e objetivos distintos são levados com insolente à vontade por Álamo Facó e Felipe Abib.A orquestração afinada do elenco e o ritmo preciso de Pterodátilos respondem pelo trunfo do diretor na sua decidida opção pelo teatro anglo-americano. Se o mundo vai acabar, vamos afundar rindo e com aplausos.

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