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Aos mestres, sem frescura

Por JOÃO MARCOS COELHO
Atualização:

O pianista inglês James Rhodes tem 35 anos. Em 2010 gravou seu derradeiro disco de música clássica convencional, um álbum duplo do selo inglês Signum onde interpreta Bach, Beethoven e Chopin. Mas a foto de capa já choca: camiseta listrada, lábios pintados de vermelho, calças com uma perna vermelha e outra azul, além de galochas amarelas. Quando você abre o CD duplo, leva na cara o título Now would all freudians please stand aside, algo como 'freudianos, por favor, tirem o seu bloco do meu caminho', em tradução superlivre.Esta irreverência, aliada a sua qualidade evidente como pianista, trouxe-lhe algum sucesso de vendas na Inglaterra e, no início de 2011 foi contratado pelo selo pop da Warner. Você leu certo: Rhodes é contratado do departamento pop da Warner. Só que a gravadora trabalhou seu marketing apenas na Grã-Bretanha. Meses depois é que se ouve, aqui e ali, alguma referência à primeira gravação pela Warner, o álbum duplo Bullets & Lullabies. Algo como balas e canções de ninar. Um arraso.James é uma figuraça. Já foi casado, teve filho, despirocou e a mulher mandou-se para os EUA. Trata a música clássica como se ela não fosse clássica. Isto é, tira o ranço habitual que gira em torno dela e a transforma em algo apetitoso, acessível. Cada CD cabe em um estado de espírito específico. No texto do folheto interno, James diz que 'bullets' é pra você colocar de manhã, enquanto guia seu carro indo ao trabalho; já 'lullabies' pode ser ouvido no final do dia, quando você, exausto por causa das encheções de saco corporativas, quer apenas relaxar. "Ao menos pra mim funciona assim", escreve. "É como se você entrasse 24 horas na minha cabeça." Diz que chamou de Bullets and Lullabies, mas poderia chamá-lo de 'Cocaine and benzos'. A vertiginosa Toccata, um dos movimentos de Le Tombeau de Couperin, de Ravel, abre o CD Bulletts. James diz que a peça o faz lembrar de Ravel com Gershwin sentadinho num inferninho do Harlem nos crazy anos 20 (fato que aconteceu mesmo). "Ele era filho de um relojoeiro suíço com uma basca", mistura explosiva que lhe deu a 'precisão de um patek-philippe combinada com a carga emocional da mãe espanhola'. Ele escreve bem e toca ainda melhor. Não dá pra resistir. Beethoven, por exemplo. James diz que fazer um disco de piano e não colocar algo de Beethoven é como 'tirar Shakespeare do currículo escolar inglês'. Escolheu para seus Bulletts o Scherzo da Sonata opus 31, no. 3. Outro compositor obrigatório é Chopin. James escolhe o Presto da Sonata no. 3 opus 58, "em si menor para quem se interessa por estes detalhes", avisa. E diz que "esta música é ótima pra quando você chuta o pau da barraca, manda seu chefe sifu. Pra mim funciona assim." As interpretações são entusiasmantes. E a língua ferina. Grieg pra ele é um "Einstein em miniatura" (procure no Google uma foto do Grieg; ele tem razão). E Charles Ferdinand Alkan, o fantástico mas pouquíssimo conhecido compositor-pianista contemporâneo e amigo de Chopin em Paris, "era um pianista fenomenal. Até Liszt tinha medo de tocar na frente dele". A sequência é perfeita pra quem não conhece Alkan nem Liszt: "Imagine Lewis Hamilton dirigindo algumas voltas num circuito de Fórmula 1 com Airton Senna no banco do carona". Que saia justa! O segundo CD, Canções de Ninar, foi concebido para o chamado 'descanso do guerreiro' após um dia de trabalho. James começa com Rachnaninov, seu compositor preferido. Gosta tanto do russo que tatuou em cirílico seu nome no antebraço direito. "Ele fazia o que amava - entregava-se ao charme romântico luxuriante." Os outros compositores são Debussy e Brahms, além dos já citados Chopin, Grieg e Ravel.É difícil, mas garimpando bem ainda é possível encontrar pianistas imaginativos, de fino humor, conectados com o século 21 e ainda excelentes músicos. Daí meu entusiasmo. O tempo dirá se Rhodes vai triunfar. Até porque tem a cabecinha tão conturbada que pode bem naufragar no meio do caminho. Vamos torcer para que continue nos oferecendo muitas mais dessas bulletts & lullabies nas próximas décadas.

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