Antunes Filho reconstrói ‘Nossa Cidade’ para mostrar o atual domínio dos EUA

Em espetáculo, encenador une sua dramaturgia à do autor americano Thornton Wilder

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Por Ubiratan Brasil
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Antunes Filho tem uma interessante definição sobre a concepção artística – basta lembrar da forma de trabalho do pintor holandês Van Gogh: depois de observar os girassóis, ele não se limitava a reproduzi-los na tela. “Van Gogh submetia a natureza à vida e apresentava a sua visão”, conta o encenador, que realiza algo parecido com Nossa Cidade, uma (re)construção da peça do americano Thornton Wilder, que estreia nesta sexta, 4, no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação.

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"São duas dramaturgias unidas: a de Wilder e a minha, que modifica, atualiza, mas mantém o respeito pelo original”, conta Antunes. “Ele brinca com o espaço e o tempo, o que me permite promover uma criação dialética com a dele.” Encenada pela primeira vez em 1938, Nossa Cidade (que valeu o prêmio Pulitzer a seu autor) logo tornou-se referência na dramaturgia mundial por eliminar todo o aparato cenográfico: em cena, sobraram algumas cadeiras, duas escadas de serviço e duas treliças móveis apresentadas como uma concessão irônica “aos que acreditam que é preciso ter um cenário”, segundo observação do próprio Wilder.

Aos atores, cabia a principal função criativa, ou seja, apresentar as ações cotidianas, indicar e descrever a localização de objetos inexistentes,  desvencilhar-se das convenções espaço-temporais do texto e, por extensão, dos recursos ilusionistas da cena italiana.

Antunes manteve o mesmo espírito ao transferir para o palco do Anchieta a sua sala de ensaios, com um aparato cênico que traz a precariedade de um “não cenário”, como pede o próprio dramaturgo nas primeiras palavras do texto original. “Antunes buscou algumas fendas deixadas no texto de Wilder para mostrar como o ‘american way of life’ passou a determinar as regras sociais de todo o mundo”, observa o ator Leonardo Ventura, que vive um dos principais papéis de Nossa Cidade: o Diretor de Cena, um personagem que indica o tempo, delimita os lugares da ação e impõe limites à atividade crítica do espectador, extraindo conclusões sobre o significado do que está em cena. É ele quem apresenta as famílias Gibbs e Webb, que, na pequena cidade norte-americana de Grover’s Corners, no início do século 20, vivem um cotidiano cheio de pequenas descobertas.

Mas, se na versão original de Thornton Wilder, o narrador é onisciente e tem a missão de fornecer informações normalmente veiculadas por meio dos diálogos, o Diretor de Cena de Antunes Filho assume uma função física no espetáculo, criando e interagindo com os demais personagens. E, dessa relação, surge uma narrativa que mostra como o mundo hoje é totalmente moldado pela concepção americana criada após a grande crise de 1929, quando a quebra da Bolsa de Valores de Nova York detonou uma depressão financeira que se alastrou pelo mundo. “Quando escreveu a peça, Wilder ainda vivia a quentura do presente e não dispunha do distanciamento temporal necessário de que hoje desfrutamos para avaliar as consequências daqueles acontecimentos”, comenta Antunes.

O encenador comemora também o predomínio da ressonância, técnica vocal que julga ideal para o ator em cena. “Praticamente 80% do elenco consegue executá-la corretamente”, conta ele, referindo-se a uma forma em que a voz é uma espécie de alavanca, pois o corpo fala pelo gestual. “Não apenas falamos todas as sílabas, mas principalmente valorizamos a espiritualização de cada uma”, observa Ventura.

Notório provocador, Antunes quer incitar o público a reagir. “Nem tudo são rosas ou espinhos”, filosofa. “Não permito que qualquer ideologia ou qualquer oportuno bom-mocismo político-social venha se impor com sua parolagem à autêntica liberdade, não figurada, esculpida em pedras ou metal.”

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Do fracasso à glória

Thornton Wilder (1897-1975) só adotou um cenário limpo, com poucos objetos, depois que sua primeira versão de Nossa Cidade, com muita cenografia, foi um estrondoso fracasso.

 

NOSSA CIDADE

Sesc Consolação. Teatro Anchieta. Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, 3234-3000. 6ª e sáb., às 21 h; dom., às 18 h. De R$ 6,40 a R$ 32. Até 8/12.

 

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