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Antonio Prata retorna com ternura à história de sua infância

Autor lança 'Nu, de Botas', que cria paralelos com Fernando Sabino

Por Luís Henrique Pellanda
Atualização:

Em 1994, quando Mario Prata publicou no Estado a crônica Filho é bom, mas dura muito, Antonio era ainda adolescente. Desde então, vem durando. Hoje, cronista consagrado, acaba de forjar um doce revide: seu novo livro, Nu, de Botas, recria a história de sua infância e reserva ótimos papéis a seu pai, Mario, e a sua mãe, a escritora Marta Góes. Ambos essenciais ao humor e à ternura que marcam a obra recém-lançada. Até a epígrafe que Antonio Prata escolheu para ela, retirada de Murilo Mendes, parece reajustar o autor à fantasia de menino que sua literatura restaurou: “Nascer é muito comprido”.

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Nu, de Botas não é bem um livro de crônicas, nem se acomoda em gênero algum. Mistura memória e ficção e, linear, lembra uma novela fragmentada, onde cada “conto” funciona como um capítulo. E já no primeiro, Gênesis, entendemos que Prata vê a meninice como um paraíso perdido.

Gênesis tem muito em comum com a abertura do clássico O Encontro Marcado, de Fernando Sabino. O capítulo inicial deste romance se chama O Ponto de Partida, e nele, assim como na narrativa de Prata, o leitor é apresentado a uma criança sensível para quem o mundo é o chão que ela cava e investiga.

Nos dois casos, a ação começa no entorno de um quintal. Enquanto Prata cavouca “com gravetos a fenda entre os paralelepípedos”, Eduardo Marciano, alter ego de Sabino, analisa o “chão remexido com pauzinhos” e estuda “a simetria dos ladrilhos” de certo assoalho. O narrador de Prata, por sua vez, imagina ver elefantes num piso “ladrilhado com cacos de cerâmica vermelha”.

O paralelo é irresistível. Os dois protagonistas falam em cavernas ou tesouros de piratas, desalojam formigas e minhocas. Divergem apenas num terceiro bicho: Marciano, explosivo, descobre um escorpião sob um tijolo; Prata, mais contido, reverencia a armadura esférica dos tatuzinhos-de-jardim.

O menino Antonio, aliás, no começo de Nu, de Botas, vive voltado para a terra, entretido com o ato de cavar, buscando o fundo ou o interior de si próprio. Certo dia, ao ouvir na TV a notícia do fim do mundo, nem se abala: “Pena, não vou poder sair mais pra rua”. E continua a brincar, como se sua casa não pertencesse àquele planeta condenado.

Antonio é uma criança de classe média, criada por pais liberais que nunca lhe negam a verdade. Mas, em vez de confortá-lo, isso o enche de perplexidade, como no hilário episódio em que um bem-intencionado Mario Prata ensina aos filhos que a felação é algo normal e saudável, praticado por todos os seus conhecidos, inclusive pais e avós. Para piorar, dá a definição inesquecível: “Pinto é pele”. O humor em Nu, de Botas, é bom que se diga, acerta ao fugir da grosseria politicamente incorreta, mas opta pela franca escatologia, como é do gosto infantil.

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À medida que se aproxima do final, o livro se eleva. Um incidente violento, em que um dos amigos de Antonio é baleado, faz com que o interesse do menino se transfira do chão para o céu: Deus mora lá? Seu pai não sabe, e não esconde seu ceticismo.

Mais tarde, na aula de ciência, o guri aprende a “fazer chuva” em laboratório, aprisionando a natureza num pote de maionese. Sente-se desiludido, “expulso do Éden”, mas o céu ainda lhe reserva um presente: graças ao fiasco do cometa Halley, o narrador toma consciência de sua sexualidade. A epifania se dá quando a bela mãe de um colega o apanha no colo e o ajuda a perscrutar o espaço com uma luneta.

Fora do paraíso, o menino está desprotegido. Na escola, logo comete uma covardia amorosa, que o faz antever o Juízo Final. A partir daí, aquele velho hábito de infância, andar nu calçando botas de super-herói, poderá ser vivenciado apenas como sonho e transgressão, uma secreta nostalgia da imaturidade.

LUÍS HENRIQUE PELLANDA É AUTOR DE ASA DE SEREIA, ENTRE OUTROS.

NU, DE BOTASAutor: Antonio PrataEditora: Companhia das Letras (140 págs. R$ 31; R$ 21,50, o e-book)

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