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Anatomia de um histórico fracasso

'Ascensão e Queda do Comunismo', de Archie Brown, revisa a doutrina que vigorou na URSS e outros países

Por Elias Thomé Saliba
Atualização:

Todo livro de história que inclua em seu título a dupla ascensão & queda, já carrega um tom monumental que faz lembrar a clássica narrativa de Edward Gibbon sobre Roma antiga: um império fadado à autodestruição pelo próprio sucesso. O mais recente livro de Archie Brown, Ascensão e Queda do Comunismo não foge à regra - com a única diferença que ele trata de um império fadado à autodestruição não pelo sucesso, mas pelo próprio fracasso. A narrativa começa pelo impacto que a ideia comunista, com sua mistura original de ilusão romântica e determinismo histórico intransigente, exerceu sobre corações e mentes. O dado mais revelador é que a fonte intelectual que deslanchou a atração de muitos pelo comunismo, pelo menos no mundo anglo-saxônico, não foi propriamente a leitura de O Capital, de Marx, mas do Guia da Mulher Inteligente para o Socialismo e o Capitalismo, de George Bernard Shaw, publicado em 1928. O pragmatismo irônico de Shaw, oriundo do seu antigo engajamento no socialismo fabiano, estava mais próximo do oxigênio mental aspirado pela juventude britânica na época. Didático, mas sem se apegar a lugares-comuns, Brown, historiador britânico e professor emérito da Oxford University, realiza uma autêntica anatomia dos sistemas comunistas, atribuindo-lhes seis características essenciais: o papel de liderança do Partido Comunista; o "centralismo democrático" (que, na verdade, acabou virando um "centralismo autocrático"); a posse pelo Estado dos meios de produção; uma economia de comando e não uma economia de mercado; o propósito declarado de construir o comunismo como um objetivo final e, finalmente, a existência de um movimento comunista internacional com o respectivo senso de pertencer a ele. Em todos os capítulos estas características são destrinchadas, uma a uma, e confrontadas com a história peculiar de cada país. Por que o comunismo durou tanto tempo? Muitas respostas são possíveis, porém a resposta mais óbvia se situa na determinação política e no poder militar da União Soviética. Brown sabe disso, já que mais da metade do livro trata da história da URSS. Mas não deixa de examinar, num impressionante exercício de história comparada, todas as outras experiências muito peculiares a cada um dos 15 países comunistas: Albânia, Bulgária, Camboja, China, Coreia do Norte, Cuba, Hungria, Iugoslávia, Laos, Mongólia, Polônia, Alemanha Oriental, Romênia, Checoslováquia e Vietnã. Brown mostra-se extremamente capaz de enxergar diferenças entre as escolhas pessoais de militantes comunistas e as razões abstratas, imponderáveis, e não raro, insondáveis, dos Partidos Comunistas, tanto no exercício do poder quanto fora dele. Nos países ocidentais, o percurso óbvio daqueles militantes que ingressaram no partido por motivos idealistas foi deixá-lo, quando ficou evidente a distância entre suas doutrinas e os crimes coletivos perpetrados pelos Estados comunistas. Era, contudo, bem mais fácil dizer isto do que fazer, pois aqueles que deixavam o partido sentiam o estigma de traidores de uma causa sagrada. Brown fornece muitos exemplos de tais trajetórias dramáticas de militantes que ele conheceu pessoalmente. Como o movimento comunista tendia a envolver suas vidas inteiramente, o rompimento com o partido era também uma espécie de luto pessoal: uma ruptura com quase todos os seus amigos e com grande parte de sua vida anterior. Permanecia apenas a atração pela mensagem ética subjacente ao marxismo, ou seja, a convicção de que o destino do mundo como um todo estava ligado à condição dos seus membros mais pobres e desfavorecidos. Entre muitos, um dos capítulos mais reveladores mostra as falácias por trás da ideologia da "desestalinização" que marcou a era Kruchev (1953-1964). Um dos setores mais afetados foi o front artístico e literário. Artistas e escritores - se quisessem sobreviver - tinham de ouvir e interpretar atentamente a orientação dos dirigentes do partido em prol do "realismo socialista". Uma anedota que circulava, à boca pequena, naquela época, perguntava: "Qual a diferença entre arte impressionista, expressionista e o realismo socialista?". A resposta vinha rápida: "Os impressionistas pintam o que veem, os expressionistas pintam o que sentem e os realistas socialistas pintam o que ouvem". Com dados reveladores, Brown mostra também os outros lados da era Kruchev. Foi a época da maior revolução imobiliária na Rússia: o índice de construção triplicou e milhares de pessoas mudaram suas vidas para melhor - embora os prédios de apartamentos fossem arquitetonicamente sombrios. O programa de moradias de Kruchev foi a mudança social e política mais importante dos anos pós-Stalin: "Pela primeira vez - declarou um dissidente em 1976 - milhares de famílias russas puderam trancar a porta da frente". Com exceção de dissidentes políticos reconhecidos que tiveram suas casas grampeadas, a grande maioria da população conseguiu entabular conversas livres sobre os mais diversos assuntos, incluindo as perversidades do regime. Decididamente, a glasnost de Gorbachev, três décadas depois, não poderia ter avançado se não tivesse sido precedida por esta espécie de glasnost privada. Já a ideia de construir o comunismo, uma sociedade na qual o Estado definhou revelou-se a ilusão mais perigosa. O que se construiu, em vez disso, foi o comunismo com um partido-Estado opressivo que, na melhor das hipóteses, foi autoritário e, na pior das hipóteses, implacavelmente totalitário. Quando a coisa começou a degringolar - no final dos anos 1990, a partir do epicentro situado em Moscou e seus satélites -, nenhuma doutrina unificada e nenhum de seus muitos revisionismos mostraram-se eficientes para controlar a derrocada e, nas palavras do porta-voz soviético Gerasimov, em todos os países comunistas acabou prevalecendo a "doutrina Frank Sinatra" em My Way: "Cada um faria do seu próprio jeito". Com o perdão do anacronismo, até o chiste lembrava aquelas monumentais ironias de Gibbon sobre o Império Romano.ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DE TEORIA DA HISTÓRIA NA USP E AUTOR DE, ENTRE OUTROS, RAÍZES DO RISO (COMPANHIA DAS LETRAS)

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