Amores terminais na feérica Paris do século 19

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Por Luiz Zanin Oricchio
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O Boulevard do Crime (Les Enfants du Paradis) é tido como uma das obras-primas do cinema francês. Para muitos críticos é "a" obra-prima. Na enquete realizada por ocasião do centenário do cinema, foi eleito o filme francês mais importante de todos os tempos. Exemplo acabado do realismo poético, celebra a parceria entre o cineasta Marcel Carné e o escritor Jacques Prévert, que fizeram vários outros filmes juntos, incluindo o também muito conceituado Visitantes da Noite. O relançamento, em caixa com dois DVDs pela Versátil, é ótima oportunidade para rever a obra, e talvez refazer conceitos. Por decisão deliberada do diretor, Boulevard do Crime é artificioso, tanto nas filmagens em estúdio como nos diálogos literários. Não são defeitos, como ficaria configurado na era pós-nouvelle vague, mas opções. Escolhas que, é verdade, podem fazer sentido mais em determinadas épocas do que em outras. Seria Boulevard datado? Eis a questão. Basta vê-lo para saber que não. Boulevard exibe o poder de permanência dessas obras que atravessam épocas. Faz com que nos transportemos para outro tempo porque, afinal, não existe segmentação muito nítida entre as diversas experiências do homem em seus períodos históricos específicos. Podemos muito bem nos identificar com um centurião romano, caso a transposição temporal for bem realizada. Boulevard do Crime, terminado em 1945, e realizado sob a Ocupação, refere-se ainda a outra época passada, a Paris do século 19, 1840 para ser exato. O local? O Boulevard du Temple, chamado de Boulevard du Crime em razão do grande número de assassinatos que lá ocorriam. Era a avenida dos espetáculos, dos artistas, dos cabarés, enfim, da vida boêmia, desfigurado depois pelas reformas de Haussmann. É nele que tem lugar o amor impossível entre um mímico de gênio, Baptiste (Jean-Louis Barrault), e uma dama de vida livre, Garance (Arletty). São separados por outros amores, ela por casos em série com um malfeitor dândi, Jean-François Lacenaire (Marcel Herrand), o ator Fredérick Lemaitre (Pierre Brasseur) e o riquíssimo Conde de Montray (Louis Salou); ele, que termina casado com Nathalie (Marie Casarès). Acabam por se reencontrar, e nem por isso a história terá seu happy end. Para além das fabulosas performances do elenco, há charmes adicionais. Por exemplo, na maneira como Carné trabalha a relação entre "vida real" e representação. Digamos, na sequência dramática em que um nobre enciumado é conduzido a ver seu rival representar justamente Otelo, de Shakespeare. Nessa mesma relação em espelho, a França da Ocupação e do imediato pós-guerra vê a si mesma (talvez com certa consternação), cem anos antes, através das peripécias afetivas desses personagens. É fascinante.

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