
25 de novembro de 2020 | 03h00
Quando falei “americanização” pensei imediatamente numa correspondente “brasilianização” dos Estados Unidos.
A expressão causou barulho quando, em 1995, Michael Lind publicum o livro The Next American Nation (A próxima nação americana). Nele, o professor aponta o brutal enriquecimento dos americanos ricos ancorado em políticas do Partido Democrata.
Esses bilionários não formariam apenas uma “classe dominante”, mas uma “sobreclasse branca”: um segmento dotado de um poder jamais visto. Sua contrapartida seria uma “subclasse pobre-negra-asiática e marrom”. Nesse novo modo de dominação, o ideal não seria mais construir uma bíblica “cidade sobre uma montanha”, mas o egoísmo de possuir uma “mansão atrás de um muro”.
É neste contexto que Lind alerta para uma “brazilianization” da sociedade americana: “Uma anarquia feudal, altamente tecnológica, constituída por um privilegiado arquipélago de brancos em meio a um oceano de pobreza branca, negra e marrom”; uma riqueza sustentada por políticas erradas (porque seriam antiestatais) sobretudo no que diz respeito à imigração.
Eis, numa cápsula, o programa de um Trump que construiu o muro, focou os desprivilegiados e adotou o “primeiro a América”. Um programa político que o elegeu – e hoje, graças à eleição como um rito de mudança cujo resultado foi raramente posto em dúvida na América, vai tirá-lo (assim espero) da Casa Branca.
Mas tanto lá quanto cá persiste uma curiosa inversão. De fato, uns Estados Unidos “brasilianizados” seriam marcados por uma ruidosa desigualdade e um desmesurado personalismo populista – uma americanização do nosso “Você sabe com quem está falando?”, ao passo que um Brasil americanizado seria o exato oposto: uma contenção dos impulsos personalistas, fonte e razão de populismos autoritários, ao lado de uma busca de programas públicos responsáveis e factíveis. No fundo, um inesperado e americano “Quem você pensa que é?” num país no qual toneladas de privilégio, que neutralizam todas as éticas, jamais foram seriamente dirimidas.
Todo centralismo repete a realeza e se concretiza na figura de um chefe parecido com o Grande Ditador chapliniano. Um filme, aliás, cujo enredo se funda num engano de pessoa infelizmente muito mais real do que pensa a nossa vã sociologia.
Não é, pois, difícil encontrar um presidente mandão ou, como diria um puxa-saco, um “presidente forte” – esse eufemismo para estilos absolutistas de exercer um poder que, em repúblicas que se prezam, é periodicamente contido pela eleição. O chocante no caso Trump não é só o negacionismo e o uso de argumentos conspiratórios fantasiosos. O que assombra é a tentativa de usar o “Você sabe com quem está falando?” num sistema fundado na igualdade de todos perante a lei.
Conforme revelei há décadas e reitero num novo livro – Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro, Editora Rocco – esse brasilianismo é um relativizador agressivo de normas, costumes e leis que valem para todos, menos, é claro, para quem se acha...
Como é possível que tal personalismo, populista e hierarquizador, resíduo da escravidão que estigmatizou o trabalho como valor no Brasil, esteja ocorrendo num sistema obcecado em seguir normas – essa fonte de igualdade – conforme Tocqueville assinalou em A Democracia na América (1835-40)?
E, ao inverso, como é possível que nestas eleições estejamos buscando o difícil equilíbrio entre regras e pessoas, programas realizáveis e utopias populistas, gastos públicos responsáveis e corrupção?
Lá, o personalismo é o hóspede não convidado. Aqui, a intrusiva novidade é a luta pela eliminação das enormes desigualdades responsáveis por mazelas como um entranhado racismo e uma tragicômica hipocrisia política. Minha esperança é que a “americanização” do Brasil seja tão bem-sucedida quanto a “brasilianização” dos Estados Unidos.
PS: Toda negação da realidade espanta porque é uma manifestação de poder e privilégio real ou imaginário de quem a realiza. Todas as sociedades humanas, como provam crenças e hinos nacionais, contêm sua dose de etnocentrismo. É deplorável que o vice-presidente não saiba que a diversidade de cor (que não pode ser mudada como as fardas, insígnias e roupas) provoque reações que vão – esse é o objeto da Antropologia – da total desumanização e de um denso e inconsciente preconceito, à segregação física e legal como foi o caso americano e da África do Sul. O nosso “racismo estrutural” é o resíduo abjeto de um estilo senhorial e escravocrata de vida que, pela chibata, pelo contato pessoal e pelo pelourinho, transformava negros em mercadorias, máquinas e animais. Com devida vênia sou – por dever de ofício – obrigado a dizer que o general Mourão não está apenas errado. Está histórica e culturalmente míope.
É HISTORIADOR E ANTROPÓLOGO SOCIAL, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’
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