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Alguma coisa está fora da ordem

Diretor aposta na estética do absurdo para fazer fábula moral da atualidade

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Não se pode negar coragem ao diretor de Wrong, Quentin Dupieux. Não é nada fácil apostar na estética do absurdo sem cair na irrelevância ou mesmo no ridículo. Por isso, Ionesco é tão único no teatro como Buñuel, essa estrela solitária do surrealismo no cinema. É para poucos. Quando se está no mundo do absurdo, quase tudo vale, e essa ausência de regras, que soa como promessa de liberdade total, torna-se, de fato, numa armadilha para o criador. E Dupieux resolve enfrentar o desafio e faz até que um filme interessante - pelo menos em algumas de suas partes. Um dos desafios, desta vez de quem escreve sobre a obra, é comunicar de que se trata afinal. Em Wrong, pode-se dizer que temos um personagem em busca do seu cachorro, sumido da noite para o dia. Uma estranha pizzaria oferece seus produtos por telefone e acontece de a atendente se apaixonar pela voz do homem que perdeu o cachorro. Entra em cena também um charlatão (mas este já é um juízo de valor) que revela ser ele o responsável pelo sumiço do cão, com a ressalva de que o fez por motivos mais humanitários do que aparenta. A maneira como os planos e os esquetes evoluem mostra aqui outra filiação (ou seria melhor dizer inspiração?) de Dupieux - Todd Solondz, o diretor que procura flagrar em seus filmes, ferozmente independentes, a distopia americana. Quer dizer, o reverso do sonho, no que ele tem de róseo e acrítico. Em Solondz, as famílias são disfuncionais de maneira agressiva e nem são destoantes de um ambiente, ele sim todo estranho e cheio de arestas que não se deixam perceber graças à ideologia dominante. Que, como todas as ideologias, serve para encobrir realidades demasiado incômodas. Isso faz Solondz - e, em parte (menor), também Dupieux. Ele mesmo diz que se inspirou no amor que devota aos cães para escrever essa história, uma espécie de fábula moral sem grande ordenação lógica. No entanto, no meio dela aparecem, é verdade, alguns traços mais agudos da nossa sociedade (e digo "nossa" porque se trata de um modelo exportado para o mundo e alegremente adotado por todos como se fosse para benefício geral).Nesse modo de usar universal do gênero humano consta, sem dúvida, um item que recomenda a adoração a animais de estimação, cães e gatos em geral. Razões não faltam. Como se recomenda uma prudente desconfiança em relação ao próximo, esses seres da nossa própria espécie sempre prontos a puxar-nos o tapete quando vier a ocasião, é preciso devotar nosso afeto a esses seres confiáveis. Afinal, um cão está conosco em qualquer circunstância. Não nos trai. Nem nos abandona ao menor contratempo. Daí a popularidade dos pets. Que, se justificada, assume às vezes ares de um exagero um tanto ridículo. E sempre existe aquele verso famoso de um roqueiro patrício Eduardo Dusek: "Troque seu cachorro por uma criança pobre". Por certo Dupieux não conhece a música, mas nem por isso deixa de colocar uma cena que evoca esses versos fortes, mas que fazem mais sentido em países com brutais diferenças sociais, como ainda é o caso na América Latina. Da mesma forma, sobram farpas para a vida corporativa, embora talvez seja exagero expressar a insalubridade contemporânea do ambiente de trabalho fazendo chover constantemente dentro do escritório. Mas a forma como a patroa comunica ao protagonista Dolph Springer (Jack Plonick) que ele não precisa mais se dar ao incômodo de comparecer à firma é quase realista em sua veracidade, destoando do quadro mágico da história de Dupieux. Assim como parecem bem familiares a trivialidade mental da personagem de Emma (Alexis Diziena) ou a picaretagem explícita do guru Chang (William Fichtner). São todos, com traços aumentados pela caricatura, personagens da nossa vida contemporânea. Ao mesmo tempo, Dupieux não consegue evitar um tom naïf, certo primitivismo simplificador que o faz ficar distante da veia mais ácida de Tolondz, para voltar a essa referência. Com momentos agradáveis e até divertidos, Wrong deixa um travo de inconsequência no paladar do público um pouco mais exigente.

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