Alfredo Bosi reflete sobre criação poética

"A poesia não é conteúdo, uma palavra que considero imprópria, é expressão articulada na linguagem", diz o autor de O Ser e o Tempo da Poesia que foi lançado há 25 anos e volta agora ao mercado

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Por Agencia Estado
Atualização:

Em O Ser e o Tempo da Poesia, Alfredo Bosi elege um capítulo especial, o quinto (de seis), Poesia-Resistência, em que procura definir como um poema pode atravessar o tempo. Diferentemente do que o título do ensaio pode sugerir, não se trata de uma poesia engajada, mas de uma arte que não se dobra às pressões. "Nem todo trabalho torna o homem mais homem. Os regimes feudais e capitalistas foram e são responsáveis por pesadas cargas de tarefas que alienam, enervam, embrutecem. O trabalho da poesia pode também cair sob o peso morto de programas ideológicos: a arte pela arte, tecnicista; a arte para o partido sectária; a arte para o consumo, mercantil", escreve. E continua: "Não é, por certo, dessas formas ocas ou servis que tratam as páginas precedentes, mas daquelas em que a ruptura com a percepção cega do presente levou a palavra a escavar o passado mítico, os subterrâneos do sonho ou a imagem do futuro." Na entrevista, Bosi criticou também o que chama de apropriação de signos poéticos pela propaganda. Disse, por exemplo, que um slogan publicitário pode parecer poesia, mas, na verdade, é um uso de uma característica sua (o trocadilho, o duplo sentido), mas não é poesia. Leia abaixo os principais trechos da entrevista. Estadao.com.br - O título do seu livro lembra Ser e Tempo de Heidegger, mas o sr. não o cita. Por quê? Alfredo Bosi - Embora os dois termos lembrem a obra de Heidegger, a inspiração do livro não é heideggeriana. Ela tem muito a ver com a idéia da força do tempo. No caso de Heidegger, ele instituiu uma metafísica do ser, opondo o ser à temporalidade. A existência autêntica seria aquela que sabe que vai morrer, a única verdade que o tempo nos dá. Nós somos o ser-aqui, o homem em face da finitude, e o tempo é a própria substância dessa finitude. Que estética pode nascer de uma visão tão radicalmente ancorada na idéia da morte? A poesia autêntica seria a que nos fala e nos prepara para a finitude. Há uma coerência extraordinária em Heidegger. Mas não é a minha visão existencial. E qual é ela? Volto à posição de Hegel, em que o tempo não é só o destruidor, fora do qual há nada. Quando penso em tempo, penso numa vasta dimensão histórica, em que o presente não é o fim do passado, o presente é uma duração que prepara o futuro - e esse percurso tem sentido, dentro da história humana. Não é um percurso em que cada geração sofre de seu destino, morre, desaparece, e a outra geração recomeça, tudo de novo, com a única finalidade de morrer. Eu não diria que Heidegger afirmou isso, mas considerar o tempo apenas como uma passagem fatal para a destruição individual (ou mesmo de uma civilização) impede que se construa uma ontologia da memória. É graças à memória que o tesouro das experiências humanas é conservado, dialetizado, levado à frente. Por isso, escrevi o ser e o tempo não como dois absolutos metafísicos, mas o ser e o tempo da poesia. Existe uma atividade espiritual e artística que começou em tempos imemoriais, como rito, e essa atividade expressiva e comunicativa do espírito dentro da sociedade é universal, existe em todas as culturas. A poesia não é o único universal, mas é um dos primeiros, pois corresponde à nomeação das coisas. Esse primeiro momento é uma espécie de aurora da poesia, que já nasceu com certas características formais que se mantêm, como ritmo, melodia, repetições, semanticamente com as metáforas, as figuras. O que a análise estrutural, formalista, nos mostrou tão bem nos últimos 50 anos, apoiada na lingüística, para mim é objeto de admiração constante. O que a lingüística estrutural e a semiótica esquematizam como "características da linguagem poética" pré-existe à prosa. Uma das idéias que eu acho válidas é que a prosa é posterior à poesia, que é a grande descoberta de Giambattista Vico. Uma das idéias fundamentais é que a poesia se confunde com a origem da linguagem, no seu conjunto total, ao passo que a prosa, sobretudo a discursiva, é uma especialização abstrata da linguagem. Alguns estruturalistas não entenderam isso bem, acham que a poesia é uma espécie de desvio da prosa, como se primeiro houvesse a prosa cotidiana, pedestre, realista, e depois uma espécie de transgressão. O sr. escreveu esse livro há 25 anos. O que mudou nessa relação entre história e poesia nesse tempo? O prefácio que escrevi agora evidentemente não altera em nada a teorização. Mas as circunstâncias mudaram. Ou, pelo menos, certas características ficaram mais agudas. Em 1975, estava começando essa mudança que se chama pós-modernidade. Mas eu passei ao largo disso. Cultivava uma certa modernidade, que considero já clássica, poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Jorge de Lima e Ungaretti na Itália. Mas essa modernidade entrou em crise, outros valores começam a ignorá-la, cria-se um clima de pós-modernidade que corresponde ao avanço da universalização da mercadoria - que os marxistas qualificam como um mal, os neoliberais como um bem, mas que é um fato. A mercantilização atingiu fundo os valores simbólicos, a imprensa, a universidade; alastrou-se a idéia da cultura como mercadoria, que pode ser trocada, negociada e descartada, finalmente, em nome de outra mercadoria. As coisas que aparecem é que valem, a cultura é um grande show. Tudo tem de ser diariamente renovado. Há uma multiplicação dos produtos ditos poéticos. O consumismo chegou às produções simbólicas: música, cinema, teatro, poesia. Com isso, o panorama muda quantitativamente - edita-se muita poesia. É um fato sociológico, que um sociólogo da cultura deve estudar. Isso me preocupa menos, porque, afinal de contas, tudo foi multiplicado. O que chama a atenção e exige um repensamento é o teor do que se está produzindo. Houve mudanças estruturais no coração da expressão poética? Quem fala no ser e no tempo da poesia tem de enfrentar esse problema. No prefácio, eu aponto duas direções que considero resultantes dessa situação. Uma delas é a multiplicação dos produtos literários, porque, com a explosão da demanda universitária nos últimos 30 anos, muito mais gente tem acesso aos códigos letrados transmitidos pelas universidades. Com isso, cria-se uma poesia neomaneirista, muita gente escreve "à maneira de". Uns preferem Oswald de Andrade; outros, João Cabral. A gente lê centenas de decalques inconscientes da grande poesia moderna. Tudo bem, é bom que escrevam. O problema é que a pessoa não está querendo fazer cultura-mercadoria, mas está fazendo. Falava-se muito da sonetomania, do Sonetococus brasiliensis. Hoje não é mais o soneto, todos se acham antiacadêmicos; na verdade, são neoacadêmicos. Outra vertente seria o baixo nível que é simétrico ao alto nível. Além do neomaneirismo, como a nossa forma capitalista é selvagem, não requintada, há também o descarte total das formas literárias, aqueles que escrevem projetando imediatamente seus sentimentos, paixões, ódios, pichação de parede, da Internet, formas violentas de comunicação, uma cultura de massas computadorizada. As pessoas que se comunicam e escrevem de uma maneira violenta, selvagem, rompendo com todas as formas literárias, não conscientemente, mas no sentido de achar que poesia é performance imediata, uma idéia de que não há fronteiras entre poesia e a projeção imediata, você têm palavrões, desprezo da forma literária, a visão de que poesia é uma espécie de autobiografia imediata, aquém da forma. No capitalismo selvagem, também se cria uma poesia kitsch, ultra-sentimental, pseudo-mística, pornográfica, em que simplesmente se projeta, desprezando a tradição literária. Quem segue essas vertentes? Depois de definir essas duas vertentes, eu não falo nem de uns nem de outros. O capítulo Poesia-Resistência é a minha proposta, não é só descritivo, é aquele em que me engajo. Nenhuma dessas formas é poesia de resistência. Procuro ver em toda a tradição literária, sobretudo a partir do século 19, uma poesia que resista às pressões, quer da academia, quer à idéia de que a poesia seja mera projeção dos sentimentos. Digo que, apesar de esses dois caminhos serem predominantes, o do formalismo excessivo e o do conteudismo bruto, não são os caminhos que julgo poesia de resistência, que é uma coisa mais macerada, um trabalho, mas não um trabalho pelo trabalho, é um trabalho de escavação, que nem sempre dá resultado imediato. Por que Dante comove? Ele escreveu em 1300, como um homem de 1300 pode me comover, em 2000? O que aconteceu: foi o ser que superou o tempo. O sr. não usa essa divisão entre forma e conteúdo no seu livro. Assim, foge da tradicional oposição entre formalistas e conteudistas. Sim. Os primeiros estudos tratam do som, do ritmo do andamento, daquelas características que normalmente são consideradas formais dentro da poesia, que são características constantes através dos séculos. Procuro não só descrevê-las, classificá-las, como faz um livro tradicional de teoria literária. A minha preocupação era mostrar o significado dessas formas, mostrar que os sons têm uma relação com o sentido, e discuto se essa relação é social, cultural. No caso do ritmo, não estou só preocupado em descrever forte-fraco-forte-fraco, ou forte-fraco-fraco-forte-fraco-fraco, aquilo que a poesia tem em comum com a música. Há uma reflexão sobre o sentido do ritmo, o que significa, que relação tem com a respiração, o corpo. As mensagens são trabalhadas em determinados ritmos, e isso não é aleatório: o ritmo tem um sentido. Um ritmo rápido tem um sentido diferente de um ritmo lento, e o que é um sentido? É uma expressão. A minha intenção era mostrar como a forma é viva, a forma está em si mesma animada de significado. Eu não dissocio forma de expressão, só que, didaticamente, eu falo primeiro de forma, e depois de expressão. A linguagem não é como a música, você não pode dizer todas as coisas ao mesmo tempo. A música tem o canto e o acompanhamento, e a frase expositiva tem de dizer uma coisa depois da outra. A poesia não é conteúdo, uma palavra que considero imprópria, é expressão articulada na linguagem. A expressão sem forma é o grito desarticulado. Não existe uma expressão poética sem uma correspondente forma poética, é uma idéia clássica que eu assumo. A questão da ideologia é muito forte no livro. Sim, sobretudo quando falo de poesia de resistência, pode haver quem entenda que eu defenda uma poesia abertamente política. Isso não coincide exatamente com a minha proposta. A representação ideológica direta é apoética, corresponde a um verso que já foi sistematizado por um pensamento político, que é um pensamento de ação, não de contemplação. Poesia é uma forma de expressão. Ao passo que a política é uma forma de ação ou de conformação. Antonio Gramsci, um revolucionário autêntico e amante de poesia, dizia que é muito comum a pessoa apaixonada politicamente fazer juízos de valor impróprios quanto a poetas que não seguem a sua ideologia. Gramsci também dizia que a diferença estava no fato de que o político (revolucionário) olha a realidade para mudá-la, a cultura para mudá-la. De sorte que há um desencontro quase fatal porque o poeta está exprimindo, contemplando a realidade, sentido-a. Se o revolucionário não levar isso em consideração, vai jogar a poesia de Ezra Pound no lixo porque ele fez um discurso favorável à Itália fascista - é verdade que logo depois foi internado num manicômio. E vice-versa: um reacionário não suportará Maiakóvski, que o tempo todo fala da revolução. Maiakóvski não é um poeta de ação? É, mas ele é grande por exprimir suas paixões, e não porque tinha uma bandeira. Havia uma centena de poetas ruins na União Soviética, que também eram revolucionários. É preciso marcar essa diferença: a pura ideologia é a morte da poesia, não suporta que as pessoas sintam o que sintam, ela está numa fase de impaciência política. Isso não significa que a poesia não contenha ideologia, mas o valor intrínseco de um poeta não deve ser medido pelo grau de adesão a uma ideologia. Nesse livro, o sr. nunca classifica os autores, em modernos, românticos etc. Isso faz parte do pensar a poesia dialeticamente? Sim. As classificações históricas são necessárias mas têm um limite. Um grande poeta é um grande poeta, independente de sua época. Um crítico literário tem de ir além da classificação histórica. Ele pode classificar historicamente, porque a história se impõe. Bilac é um parnasiano. Gonçalves Dias é um romântico. Mas, como Gonçalves Dias é maior que Bilac, vamos estudá-lo como poeta, enquanto no caso de Bilac a tendência é identificar as características parnasianas. Benedetto Croce dizia que a classificação só é útil para os bibliotecários. Didaticamente, a gente usa até demais. No colegial, no cursinho, dá-se a lista das características do arcadismo, do romantismo, do modernismo. O aluno decora e a poesia vai para o brejo, porque nem lê o poeta, ou só o lê para encontrar aquelas mesmas características. Pensa que chegou ao final, mas está no começo. Felizmente a universidade vai além. Uma pergunta de jornalista: o sr. teria recomendações a um jovem poeta? Isso lembra Reiner Maria Rilke. Bom, é difícil, porque eu também não sou poeta. E as recomendações têm de ser aquelas fundamentais. Primeiro, viver a vida com profundidade, estar sempre à procura do sentido da vida, resistir ao caráter descartável, parar. Deter-se na sua experiência, seja um amor, uma doença, um sofrimento. Depois, saber o que outras pessoas fizeram com seus sentimentos, o que os grandes poetas fizeram com sua matéria-prima existencial, para conhecer as formas que a cultura lhe dá. E daí começar a escrever. Na verdade, não são conselhos, são reflexões em torno da criação poética.

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