
25 de agosto de 2014 | 02h05
Apesar de ausente dos manuais médicos, a doença faz, todos os dias, centenas de vítimas: são pobres infelizes que vagam com o olhar perdido em torno de quadras de vôlei, ávidos por uma oportunidade de entrar em campo e participar de duas ou três jogadas, mesmo que à custa de roubar a bola alheia e perder o ponto.
Não importam a falta de habilidade, a baixa estatura ou a comorbidade com outras patologias; o vício pelo esporte arrasta consigo hordas de inocentes em busca de alívio temporário, ainda que estes acabem invariavelmente em clínicas de ortopedia, onde também buscam a alegria do tratamento com uma bola medicinal.
De fato, é possível identificar qual a etiologia e a natureza da afecção ortopédica do sujeito apenas olhando para seu estilo de jogo: se ele salta para atacar e se esborracha no chão, pode apostar que tem um problema nos joelhos. Se ele salta para bloquear e, quando cai, leva a mão às costas, é hérnia lombar. Se ele não tem força para atacar e começa subitamente a usar o braço esquerdo, se torcendo inteiro para golpear a bola, é bursite. Levantadores de longa data podem agir de forma a acusar uma retificação cervical grave.
Nada disso é motivo para abandonar o vício; pelo contrário, apenas serve para alimentá-lo. É por isso que os Sescs estão lotados de gente no banco do "próximo", e por isso há quem acorde cedo e atravesse a cidade para bater uma bolinha inocente que pode se estender até a hora do almoço. Lembro nitidamente de partidas com gente semimorta se arrastando tarde afora, até bem depois de escurecer; lembro de uma vez em que acabou a luz na quadra e nós tentamos continuar a jogar. É com certa vergonha que me recordo de uma proposta coletiva feita ao porteiro do Macabi, que, exausto, implorou que fôssemos embora - se ele nos deixasse jogar só mais um pouquinho ganharia uma carona pra casa, veja só a cara desses infelizes, tenha piedade dessas almas adictas.
O anúncio de "último saque" é o cigarro derradeiro de um condenado à morte, e é por isso que nos arremessamos ao chão e defendemos o ponto final como se a nossa vida dependesse disso. Aliás, fazemos isso com todos os pontos, mesmo quando não está valendo nada e o nosso adversário é um trio de crianças de dez anos. "Café com leite" não existe. E o detalhe de estarmos jogando há vinte anos sem evoluir é praticamente irrelevante.
Consta que, um dia, existiram clínicas de tratamento para o vício, mas alguém teve a ideia de esticar um barbante entre dois postes e a coisa facilmente desandou.
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